- Nº 1598 (2004/07/15)
Cem anos de Neruda

Um poeta de combate

Internacional
As comemorações do centenário do nascimento de Pablo Neruda ficaram marcadas pela dinâmica popular das iniciativas, num tributo ao poeta, ao homem e ao comunista de tantos combates.

Sob o lema «Neruda, o povo te saúda», o Comité Amplo do Centenário, formado desde Março passado, mobilizou quase uma dezena de assembleias, participadas por centenas de pessoas, para elaborar o programa popular de comemoração da efeméride.
O facto do povo tomar a palavra e fazer parte inalienável da definição e realização das actividades a desenvolver constituiu, por si só, um tributo ao poeta, mas algo mais foi possível alcançar.
Na Ilha Negra, localidade onde Pablo Neruda construiu a sua casa e fixou residência – hoje convertida em museu – uma multidão de mais de três mil pessoas participou, domingo, num festival que entrou pela noite dentro.
Entre música, artesanato da região, fogo de artifício e declamação de poesia, muita poesia, festejou-se Neruda e a sua obra, diante da imagem de um Oceano que quis levar na sua última viagem: «Companheiros, enterrai-me na Ilha Negra/ defronte do mar que conheço, de cada área rugosa/ de pedras e ondas que meus olhos perdidos/ não voltarão a ver».
Do lado continental, na cidade de Valparaíso, também ela adoptada por Neruda, as comemorações estabeleceram um recorde absoluto, o do poema mais longo do mundo.
Recordados dos passeios que Neruda encetava rumo ao porto de pesca – onde convivia com os amigos em torno de uma conversa simples, um bom vinho e um petisco – moradores, organizações sindicais e estudantis e até alguns membros das forças armadas estenderam um pano de cerca de dois quilómetros, da casa-museu à beira do mar, onde escreveram palavras de poeta.

Comemorações e bloqueios

Paralelamente às iniciativas de base popular, as cerimónias oficiais, encabeçadas pelo presidente do país, Ricardo Lagos, decorreram na cidade natal de Neruda, Parral.
Da capital, Santiago do Chile, partiu o «Comboio do Poeta», transportando o chefe de Estado e mais de 300 personalidades que se associaram ao centenário do nascimento de Neftalí Ricardo Reyes Basoalto, nome de baptismo que o maior símbolo da cultura chilena viria a substituir pelo heterónimo literário Pablo Neruda, em honra ao poeta checo do século XIX, Jan Neruda.
Para além da entrega de uma centena de medalhas a personalidades mundiais da cultura, o Comité criado para o efeito instituiu ainda o Prémio Ibero-americano de Poesia Pablo Neruda, que este ano agraciou o mexicano José Emilio Pacheco.
Ainda no âmbito oficial, embora por proposta dos Comités de base, estão previstas acções toponímicas, cujo objectivo é dotar cada comuna do país de uma rua com o nome de Pablo Neruda.
Esta iniciativa merece da parte da direita, saudosista da ditadura de Pinochet, muita resistência, facto de que é exemplo a recusa do presidente de uma comuna da capital em aceder ao requerido.
O povo não se resignou e tentou meter mãos à obra, tendo sido travado pela polícia que realizou duas detenções.
Neruda continua vivo. Os combates em que se empenhou e as palavras com que expressou a vida nas suas múltiplas dimensões continuam a fazer eco no coração de milhares de chilenos.

A palavra é uma arma

Proveniente de uma família de parcos recursos – o pai era maquinista ferroviário e a mãe professora – Pablo Neruda cedo despertou para a escrita, tendo dos 13 aos 21 anos publicado diversos textos no jornal local de Parral, o «La Manana», e na revista «Selva Austral».
Já em Santiago, tráz à luz duas obras que lhe proporcionaram imediato reconhecimento, «Crepusculário» (1923) e «Vinte Poemas de Amor e uma Canção Desesperada» (1924), abraçando posteriormente a carreira diplomática.
Foi cônsul em diversos países, da América Latina à Ásia, mas foi durante a sua estadia em Madrid que melhor definiria a sua militância política, fruto do envolvimento na Guerra Civil Espanhola junto das facções republicanas, o que lhe valeria ainda a expulsão do país.
Com passagem pelo México entre 1940 e 1943, Neruda regressa ao Chile e inscreve-se no Partido Comunista Chileno (PCC), do qual viria a dizer, no poema «Ao Meu Partido», «Fizeste-me indestrutível porque contigo não termino/ em mim mesmo».
Eleito senador pelo PCC, crítica ferozmente a política repressiva de González Videla, o que lhe valeu períodos de exílio, como o imortalizado no filme «O Carteiro de Pablo Neruda».
No campo da actividade literária, publica em 1950 «Canto Geral», seguindo-se-lhe diversas obras de uma carreira reconhecida em 1971 com o Prémio Nobel da Literatura.
Em 1969 é candidato à presidência do Chile pelo PCC, abdicando em prol de Salvador Allende. O Golpe Militar que instituiu a ditadura de Augusto Pinochet no país da «Terra do Fogo» apanha Neruda já doente, e doze dias depois da intentona, em 23 de Setembro de 1973, viria a falecer. O seu funeral foi a primeira acção de resistência à brutalidade fascista, fazendo jus à sua vida e às palavras escritas.