
- Nº 1602 (2004/08/12)
Quem é essa gente?
Argumentos
É praticamente consensual: com excepção de alguns recantos colocados em canais e horários escassamente frequentados, a televisão que nos é fornecida não presta. E este facto, mais as consequentes queixas e denúncias que a degradada qualidade televisiva suscita, não é específico e exclusivo do nosso país, embora por cá possa atingir níveis mais indignantes e, sobretudo, ter consequências mais graves. É que, como se sabe, se havia país europeu a precisar de uma TV que o ajudasse a sair de um multissecular atraso cultural imposto por sucessivos poderes amantes da ignorância, era este. O caso, porém, é que a queda da qualidade é generalizada pelo menos na Europa, de onde me chegam mais notícias e mais queixas. Quanto ao resto do mundo, confesso que sei pouco. Mas sei, isso sim, que o impacto planetário de teleproduções USA não só sem nenhuns méritos mas também com um decisivo impacto perverso sobre o gosto, impõe por todo o lado a sua lei.
Ao contrário do que muitas vezes é afirmado, a inquietação e repugnância pelo estado a que chegou a TV, em contraste dramático com o que chegou a ser um projecto optimista acerca da sua acção nas sociedades, não é uma birra de «pseudo-intelectuais» anacrónicos nem uma estratégia de comunistas ou cripto-comunistas. São muitos milhões os que, por esse mundo fora, olham com uma apreensão que já tem muitas componentes de alarme esta deriva da TV, e por uma boa razão: é que eles sabem, com uma sabedoria que decorre de evidências, da mera observação de situações concretas, de uma aliás fácil decifração da realidade, que a televisão é instrumento privilegiado da construção do futuro e que esta televisão que nos é imposta faz pressentir um futuro de fome, esterco e guerra. Quanto à guerra e ao esterco nem é preciso reforçar argumentos: a realidade quotidiana já é testemunho bastante. Quanto à fome, que pode parecer improvável em sociedades ditas de consumo, basta lembrar o sempre aprofundado fosso entre os pobres e os mais ricos mesmo em áreas supostamente desenvolvidas, a dinâmica que constantemente engendra mais desemprego para sempre maior glória e proveito das grandes empresas. Enquanto as gentes se deixam adormecer por uma televisão cada vez mais rasca, apenas pontuada por espaços pouco frequentados de uma qualidade que pode ser invocada como álibi para o crime.
Onde se fala de dilúvios
De um modo geral, isto acontece praticamente em todo o Mundo Ocidental que, como se sabe, vai agora de Los Angeles a Vladivostok, e as estações que ao longo desse espaço vão habituando as gentes a deglutir como divertido o que é apenas imbecil, apaixonante o que resulta de uma premeditada manipulação de pulsões e sentimentos, verdade o que é impostura, são dirigidas por homens que inevitavelmente sabem o que estão a fazer. Fazem-no, decerto, porque dificilmente seriam tão tontos, tão inconscientes, que por si próprios não se dessem conta do que está a acontecer. Sabem-no, de qualquer modo, porque muitas são as vozes, e não poucas entre elas altamente qualificadas, que lho explicam. Sendo assim, como parecem ser, é natural que se pergunte quem é essa gente que está, de facto, a tentar moldar um mundo anestesiado, distraído, pateta, num momento da história da vida humana em que é imperativo e urgente estar desperto, atento e lúcido. Quem é esta gente e por conta de quem opera, a menos que aja por conta própria. A resposta a estas interrogações podem iluminar uma compreensão da vida actual, do que está em jogo, de quem está a ganhar e do que se pode perder.
Diz-se, e bem, que se trata dos interesses económicos e financeiros que se sentem praticamente omnipotentes e nada se importam com consequências a médio/longo prazo, até porque segregaram uma visão optimista do futuro que lhes permitirá, ou não, alguma tranquilidade interior se é que dela precisam. Lembremo-nos que é uma atitude com precedentes: houve aquele rei francês que dizia, ao que consta, que depois dele seria o dilúvio, sem que isso lhe tirasse o sono. Nesse caso, foi de facto o dilúvio que, por sinal, decapitou o neto do rei indiferente ao futuro. Os Luíses Quinze da actualidade talvez não acreditem em dilúvios, acham que a vitória de que a queda do Muro de Berlim se tornou símbolo arredou de uma vez todos os perigos que os ameaçavam. À cautela, arranjaram uma máquina do Esquecimento e do Engano. Mas os que a manejam, que tipo de gente será?
Correia da Fonseca