Cenas da política de direita (1)

O filme que não queremos voltar a ver

João Chasqueira

Que li­gação há entre o con­tínuo acen­tuar da pre­ca­ri­e­dade la­boral ou de uma re­mu­ne­ração in­certa com a brutal re­gressão so­cial que é o pa­cote la­boral?

Qual a cor­re­lação entre o nosso sis­tema de en­sino e o facto de sermos o país da União Eu­ro­peia com a maior taxa de anal­fa­betos?

Por que é que Por­tugal é o País onde co­e­xistem, si­mul­ta­ne­a­mente, a maior con­cen­tração da ri­queza e as mai­ores de­si­gual­dades so­ciais?

Qual a re­lação entre as fun­da­ções e ins­ti­tutos cri­ados nos go­vernos de Gu­terres e os jobs for the boys que me­draram no mesmo pe­ríodo pe­dindo meças ao que se vira no tempo de Ca­vaco Silva?

Em que me­dida é que a de­sar­ti­cu­lação e des­man­te­la­mento da an­tiga Junta Au­tó­noma das Es­tradas (JAE) pode ter con­tri­buído para a tra­gédia da Ponte de Entre-os Rios?

O que é que o pe­sa­delo diário que é o mo­vi­mento pen­dular casa-tra­balho, con­su­mindo tempo e di­nheiro, em longas filas ou des­con­for­tá­veis trans­portes pú­blicos, tem a ver com as más so­lu­ções de pla­ne­a­mento do ter­ri­tório e com a ine­xis­tência de uma cor­recta po­lí­tica de trans­portes pú­blicos?

Por que é que o nosso País detém o lugar ci­meiro, no con­junto da União Eu­ro­peia, no que toca ao fosso na po­pu­lação entre os dez por cento mais ricos e os dez por cento mais po­bres?

Que as­so­ci­ação existe entre o fecho de bal­cões e a perda de qua­li­dade dos ser­viços pres­tados à po­pu­lação por em­presas como a EDP e a pri­va­ti­zação de que esta foi alvo?

Sendo cada vez mais di­fícil en­con­trar bons pro­dutos agrí­colas na­ci­o­nais nos su­per­mer­cados, como uma sim­ples maçã ou la­ranja, o que é que isto tem a ver com a re­forma da PAC?

Qual a re­lação de causa-efeito entre a cres­cente di­fi­cul­dade das po­pu­la­ções em aceder aos cui­dados de saúde e as me­didas ten­dentes à pri­va­ti­zação da gestão dos hos­pi­tais?

O que é que se­para o cum­pri­mento cego do pacto de es­ta­bi­li­dade da opção go­ver­na­mental que con­gelou por três anos con­se­cu­tivos os sa­lá­rios dos tra­ba­lha­dores da ad­mi­nis­tração pú­blica com a con­se­quente perda do seu poder de compra?

Por que é que, neste mo­delo de eco­nomia, há uma va­riável imu­tável – a con­cen­tração e cen­tra­li­zação da ri­queza e do ca­pital, da má­xima taxa de lucro e da ex­plo­ração dos tra­ba­lha­dores – e outra, fle­xível, da qual se diz que deve pagar os custos da com­pe­ti­ti­vi­dade, que é sempre a da re­dução do preço da força de tra­balho?

Qual a li­gação entre a pro­pa­gan­deada tese da in­sus­ten­ta­bi­li­dade, a prazo, do sis­tema de se­gu­rança so­cial e o con­vite à adesão a sis­temas pri­vados de grupos fi­nan­ceiros como os planos de pou­pança re­forma?

Os exemplos, como os da lista acima, multiplicam-se. E podendo à primeira vista não parecer, certo é que todos estes factos têm entre si uma fortíssima relação. Todos, de uma maneira ou de outra, com consideráveis impactes na vida do povo e do País, nos mais variados domínios, têm como traço comum – a uni-los - a política de direita. A política de direita que nos últimos 28 anos, servindo o «bloco central» de interesses, num processo complexo, por etapas, tem desgovernado o País, em desforra do mais vibrante e criador período de transformação social da nossa história que foi a Revolução do 25 de Abril.
Os actores e protagonistas da acção governativa ao longo destes anos têm sido sempre os mesmos, ora travestidos de esquerda ora assumindo de forma pura e dura a sua matriz conservadora e reaccionária. As fórmulas para o exercício do poder, essas, também todas elas foram já experimentadas, sem nunca fugir, bem entendido, ao conhecido esquema bipolar da alternância.
Tudo sem convulsões nem pôr em xeque a «ordem das coisas» ainda que com suficiente alarido e paleio para, artificialmente, fazendo parecer que é diferente, camuflar o que na verdade é igual.
Por outras palavras, não no acessório e residual mas em todas as questões fundamentais e estruturantes, PSD e PS (com recurso ao CDS/PP sempre que necessário), têm sabido, por vontade própria, pôr-se de acordo.
Dir-se-á que, com o PSD, a brutalidade do pacote laboral atingiu uma dimensão nunca antes vista. É verdade. Mas é possível ignorar a lei da flexibilidade e polivalência que lhe precedeu abrindo caminho ao terrorismo legislativo de Bagão Félix?
O ataque ao SNS e ao direito aos cuidados de saúde dos portugueses, pelo ministro Luís Filipe Vieira, atingiu novos patamares com o aumento das chamadas taxas moderadoras ou com os Hospitais SA. Mas que papel desempenhou, para aqui se ter chegado, por exemplo, a ruinosa (para o Estado) entrega do Amadora-Sintra à gestão privada do grupo Mello, confirmada e assumida pelo governo do PS?
Oportuno e necessário é, por isso, lembrar algumas dessas linhas essenciais com que se tece e entretece a política de direita, independentemente dos agentes que a protagonizaram e lhe deram corpo.
Com o patético apelo à maioria absoluta a voltar a encher os discursos do líder do PS, em nome de uma alegada estabilidade, mais renovado sentido ganha, nomeadamente, recordar que na nossa vida democrática, quando tal ocorreu, a maioria absoluta e o seu exercício serviram de base ao poder absoluto, aos abusos de poder e à adopção de medidas retrógradas para os trabalhadores, as populações e o País.
Sem deixar de ter presente que o PSD e o CDS/PP foram os responsáveis pela desgraçada política dos três últimos anos – e por isso têm de ser derrotados - , importa ainda recordar os factos em que a acção dos governos PS não se distinguiu da acção dos governos dos partidos de direita. Impõe que se diga, designadamente, a este propósito, que esta acção não representou o cumprimento das promessas com que o PS se apresentou ao eleitorado, mas sim um atitude de afastamento em relação a elas, esquecendo-as, para abraçar orientações neoliberais e a política de direita em aspectos centrais, seja no plano económico ou da construção europeia, das privatizações, das relações com os grupos económicos, do ataque aos direitos laborais.
Como se poderá constatar nestas páginas, onde a força dos exemplos, ainda que breves, ajuda a compreender o alcance dos traços mais perniciosos e do carácter nefasto das opções que conformaram a política de direita.
Não pretendendo ser exaustivos no seu elenco nem na sua descrição minuciosa, os casos aqui relatados, tal como outros de que falaremos em próximas edições do Avante!, valem – enquanto precioso exercício de memória - , sobretudo, como contributo para a reflexão e para a exigente batalha de esclarecimento e informação que a todos os comunistas convoca e mobiliza até ao próximo dia 20 de Fevereiro.
Para que uma nova política, de esquerda, rompa com o vicioso ciclo da alternância e reconduza o País a um caminho de progresso e desenvolvimento.

Gestão rui­nosa

Bagão Félix brindou o País muito recentemente com a decisão de vender 65 imóveis do Estado para obter receita e deste modo tentar não exceder o défice de três por cento do PIB imposto pela Pacto de Estabilidade. Os ecos do escândalo fizeram-no recuar, vindo dizer que afinal já não era venda mas sim uma espécie de cessão temporária a entidades financeiras. A operação de antecipação de receitas acabou por ser chumbada por Bruxelas, o que, obviamente, não reduz gravidade ao seu gesto.
Mas o que importa observar, neste caso, é que o ministro das Finanças não veio inventar propriamente nada. Com efeito, a alienação de património do Estado - não como acto natural de gestão mas como expediente à pressa para conseguir receitas, recorrendo à venda ao desbarato, muitas vezes com total falta de transparência – constituiu uma prática em que governos anteriores, nomeadamente do PS, se mostraram exímios, com prejuízos sérios para o erário público.
Procedeu-se, inclusivamente, à venda em processo de execução de edifícios na posse da administração fiscal. Quem não se lembra do caso Lanalgo, cujo edifício, com um valor que oscilaria entre os 800 mil e o milhão de contos, foi vendido por 80 mil contos, dez vezes abaixo do seu valor, a uma sociedade sediada no paraíso fiscal de Gibraltar? Outro exemplo: o da venda dos terrenos do antigo quartel da Escola Prática da Administração Militar, ao Lumiar, à Cooperativa Universitas por 1,5 milhão de contos, em quatro prestações sem juros, quando um terreno idêntico, ao lado, no Campo Grande, três anos antes, fora alienado pelo Estado, igualmente para fins universitários, por 4,6 milhões de contos, isto é, três vezes mais.

Nos or­ça­mentos do Es­tado
O re­trato fiel das op­ções a favor dos po­de­rosos

Nas suas orientações política de fundo, nas opções e prioridades nele contidas, todos os Orçamentos do Estado dos governos PS que precederam Durão Barroso e Santana Lopes foram instrumentos e expressão da política de direita.
E por essa mesma razão os orçamentos foram sempre viabilizados no Parlamento ora pelo PSD, ora pelo CDS/PP, ora por ambos, excepção feita ao orçamento de 2001 em que, por razões eleitoralistas – estava o País já a ser varrido por uma enorme onda de descontentamento pela situação económica, social e laboral -, houve o recurso ao que ficou tristemente celebrado como o caso do queijo limiano.
Os orçamentos do Estado de 1995 a 2001 da responsabilidade do PS mereceram assim o aplauso (dissimulado ou não) do PSD e do CDS/PP porque nas suas opções centrais aqueles documentos estiveram no fundamental em consonância, ano após ano, com as grandes linhas de política, as posições e interesses defendidos pelos dois partidos que viriam a constituir a coligação governamental que nos últimos três anos agravou os problemas dos trabalhadores e do País.
Uma dessas opções centrais, em que todos aqueles partidos se reviram, foi o prosseguimento do processo de privatização de empresas fundamentais a um desenvolvimento autónomo nacional. Pedindo meças entre si – governantes houve do PS que chegaram a vangloriar-se de, em matéria de privatizações, terem ido muito mais longe e em menos tempo do que alguma vez fora Cavaco Silva -, essa orientação privatizadora fez-se sentir sobretudo nos sectores da energia, dos cimentos e da celulose de papel, acentuando a destruição de postos de trabalho, entregando ao controlo estrangeiro sectores-chave da nossa economia, como sucedeu com grandes empresas bancárias ou com a GALP.
Política de privatizações, que, ontem como hoje, sem qualquer racionalidade económica, tem servido apenas para satisfazer os grandes interesses privados, entregando-lhes o que resta de grandes empresas e sectores estratégicos essenciais para a defesa do interesse público.
E que não tem promovido qualquer reforço da competitividade económica nem fortalecido e consolidado os chamados «centros de decisão privados de base nacional» - lembremo-nos, apenas para citar um caso, da entrega do Banco Totta & Açores aos espanhóis - como têm pretendido fazer crer os diferentes governos, antes do PS e mais recentemente da coligação PSD/CDS-PP.
Outra orientação central dos orçamentos do Estado do PS, aplaudida pela direita, foi a continuação de uma política salarial fortemente penalizadora dos trabalhadores da administração pública. Reflectindo a vontade de impor um efectivo congelamento real dos salários, esta política traduz, afinal, uma concepção desvalorizadora da função social do trabalho e de quem não reconhece o papel central dos trabalhadores na economia e no País.
A persistência de uma política miserabilista de pensões e reformas, que viram os seus aumentos dramaticamente engolidos por taxas de inflação sempre largamente superiores às inicialmente previstas, foi outra marca distintiva em todos os orçamentos submetidos ao sufrágio da Assembleia da República na última década.
Tal como foi a manutenção durante vários anos pelo PS de uma política de falta de verdade orçamental no que respeita às contas e à situação financeira do Serviço Nacional de Saúde. Tentando, com isso, iludir a inoperância do Ministério da Saúde e a falta de resultados das orientações tendentes à melhoria da eficiência na prestação de cuidados de saúde, à reorganização, modernização e humanização do Serviço Nacional de Saúde, à resolução do escândalo das listas de espera, à redução dos gastos do Estado e dos cidadãos com medicamentos, bem como no plano da independência do SNS face aos interesses económicos da indústria e comércio farmacêutico.