Duas Catástrofes

Jorge Cadima

A re­sis­tência do povo ira­quiano está a prestar um enorme ser­viço à Hu­ma­ni­dade.

O final de 2004 fica marcado por duas catástrofes de grandes dimensões. Uma catástrofe natural: o violento terramoto seguido de vagas gigantes que, em poucas horas, ceifaram a vida a 150 mil pessoas. Outra catástrofe criada por alguns homens: uma guerra de ocupação que já provocou, segundo a estimativa da revista médica The Lancet, a morte de 100 mil civis iraquianos.
A primeira reacção dos governantes dos EUA à tragédia do Oceano Índico foi de silêncio. Sempre presentes nos nossos ecrãs, desta vez demoraram alguns dias a aparecer. Quando o fizeram, foi para oferecer 15 milhões de dólares de auxílio. Numa pouco vulgar reacção, o coordenador das operações de auxílio humanitário da ONU, Jan Egeland, declarou que a reacção das nações ricas do Ocidente à tragédia era uma «forretice». Picados, os governantes dos EUA subiram a verba para 35 milhões. Mas numerosos outros países, com economias bem menores, estavam já a oferecer quantias muito mais vultosas. Perante o escândalo, quase uma semana após a tragédia, os EUA anunciaram que disponibilizariam 350 milhões de dólares. O anúncio teve destaque na comunicação social. Mas comparem-se os números das duas tragédias.

Segundo o New York Times (30.12.04), só os custos militares das operações dos EUA no Iraque e Afeganistão «to­ta­lizam mais de 5 mil mi­lhões de dó­lares por mês». O Ch­ris­tian Sci­ence Mo­nitor (30.9.04) estimava que, o conjunto dos custos dos (então) 18 meses de guerra e ocupação do Iraque totalizava 175 mil milhões de dólares. Ou seja, incluíndo também os custos não directamente militares, chegava-se a cerca de 10 mil milhões de dólares por mês. Este último valor significa que os 350 mi­lhões de dó­lares agora pro­me­tidos pelo go­verno dos EUA para au­xi­liar os mi­lhões de de­sa­lo­jados da ca­tás­trofe do Oceano Índico equi­valem àquilo que os EUA gasta num dia para pro­vocar a ca­tás­trofe no Iraque. Os 15 milhões de dólares inicialmente oferecidos pelos EUA não chegam ao custo de um único avião de combate F-16 (The Times of India, 28.12.04). O custo de um avião de combate F-22 Raptor ascende a 225 milhões de dólares (Coun­ter­punch, 29.12.04), ou seja, quase dois terços do montante global agora prometido pelos dirigentes norte-americanos às vítimas duma enorme tragédia humana. Os números ilustram bem a obscenidade criminosa dos governantes da maior potência «democrático-ocidental».

E eis o dia-a-dia do tsunami norte-americano que se abateu sobre o Iraque, segundo o The Eco­no­mist (01.01.05): «Em Ra­madi [...] os Ma­rines estão ner­vosos. Por vezes, dis­param sobre veí­culos que se apro­ximam até 30 me­tros [...]. E nem todas as ví­timas estão em carros. Desde que des­co­briram que as bombas à beira da es­trada [...] também podem ser ac­ti­vadas por te­le­mó­veis, os Ma­rines dizem-nos que dis­param sobre qual­quer ira­quiano que vejam a ma­nu­sear um te­le­fone na vi­zi­nhança de uma ex­plosão. Os tran­seuntes no mo­mento duma em­bos­cada dos in­su­rectos também se ar­riscam a ser mortos. Os Ma­rines dizem-nos que por vezes se es­condem perto do ca­dáver dum in­sur­recto morto e matam quem quer que venha re­co­lher o corpo. Como afirma um te­nente dos Ma­rines: “che­gamos ao ponto de não poder es­perar para ver os tipos com as armas, e por­tanto co­me­çamos a dis­parar contra toda a gente... Chega-se ao ponto de já não nos im­por­tarmos com aquilo que de mal fa­zemos” ». É para isto que a maior potência imperialista do planeta tem dinheiro.
Mas comecemos 2005 com palavras de esperança. William Pfaff (In­ter­na­ti­onal He­rald Tri­bune, 29.12.04) escreve: «O Vi­et­name des­truiu o exér­cito de ci­da­dãos da Amé­rica [...] Mas não se deve abusar nem de um exér­cito pro­fis­si­onal. Também ele se pode re­voltar. [...] O Iraque está agora a des­truir o exér­cito pro­fis­si­onal que os EUA re­crutou para subs­ti­tuir o seu exér­cito de ci­da­dãos». No meio da catástrofe que se abateu sobre o seu país, a resistência do povo iraquiano está a prestar um enorme serviço à Humanidade.


Mais artigos de: Opinião

A grande questão

A situação do país é realmente muito grave. Os problemas são estruturais e profundos e envolvem praticamente todas as esferas da vida nacional. É necessário atacá-los com a maior urgência sob pena de se abrir uma crise de dimensão ainda mais vasta e perigosa. Mas como? Com que critérios de classe? Com que protagonistas no plano das forças sociais e das alianças políticas?

«Pacto de Regime» – a manobra recorrente

Desde Fevereiro, da assembleia dos «beatos» do «Compromisso Portugal», que a questão dos «Pactos de Regime» não tinha, na «agenda político-mediática», que o respectivo poder económico determina, a dimensão e relevância que agora assumiu.Na altura, em vésperas de eleições para o Parlamento Europeu, o PCP clarificou como...

Pragmatismos

As intervenções do secretário-geral do PS, José Sócrates, estão cada vez mais enigmáticas. Esta semana, desmentindo uma notícia do Diário de Notícias segundo a qual o PS, caso ganhe as eleições, aumentaria o IVA de 19 para 20 por cento, JS foi mais uma vez indecifrável: afirmou que o PS tenciona «mexer» nos impostos, mas...

Cantata de Ano Novo

Há um calendário que obrigatoriamente badala sobre nós no virar do ano. E o novo ano tem datas compulsivas que convocam o nosso empenho e desafiam a nossa confiança.Mas não são comentaristas bem alinhados (e até circunspectas personalidades oficiais) multiplicando conselhos carregados de sapiência institucional e...

Solidariedade e propaganda

Há um dito muito cristão que manda a mão direita prestar a solidariedade sem que a esquerda veja. Ou vice-versa, que isto de esquerda e de direita começou muito mais tarde. O certo é que, como muitos outros bons preceitos quanto à vida terrena e baseados no mais original e humano de todos eles, que é o de amar o próximo...