O báculo doirado

Jorge Messias
A vida do mundo católico continua a fornecer fartos motivos de interesse.
Em Portugal e no mundo capitalista, a braços com uma crise corrosiva. Diluem-se os contrastes conciliares entre fun­da­men­ta­listas e pro­gres­sistas. É particularmente alarmante a mudez das vozes críticas no interior da comunidade religiosa. Parece que a força íntima das igrejas empenhadas na solução dos problemas da humanidade se perdeu para sempre. A te­o­logia da li­ber­tação cedeu o passo ao culto de altar do cardeal Wojtyla. Morto, este, esquecido e branqueado de culpas, logo virá um sucessor com reputação mediática de ainda melhor condutor de almas ou de pastor dos fundamentalismos católicos dominantes numa «igreja nova» que é igualzinha à «igreja velha» de João Paulo II. A fórmula que permitirá este milagre passa pelo reforço constante dos princípios da autoridade e da obediência.
Na hierarquia portuguesa, esta operação revela-se cada vez mais evidente. O colégio dos bispos consente abertamente numa atitude acrítica em relação ao poder central da igreja. D. José Policarpo é a figura carismática que aparece agora, com frequência crescente, a dar voz àquilo que, em sua opinião, os bispos querem ou pensam. «Votarei sim à União Europeia», declara com ligeireza sobre o Tratado Europeu - «não creio que no Tratado haja algo que um cristão não possa votar!», conclui dando a indicação do sentido do voto aos católicos portugueses. Imperturbável, afirma catedraticamente em relação à fraude, que «quando a situação de pecado é pública, compete à Igreja defender, também publicamente, a santidade da Eucaristia, não admitindo à comunhão eucarística aqueles que se mantêm publicamente numa situação moral incompatível com a santidade deste sacramento». Palavras que devem ser lidas igualmente à luz dos escândalos que minam a nossa sociedade e a cada passo revelam o envolvimento de muitos poderosos católicos «acima de toda a suspeita». Em vez de cultivar a demagogia, o cardeal-patriarca deveria pois esclarecer, antes do mais, se os seus juízos morais são aplicáveis, ou não, aos ricos e aos poderosos que rodeiam e suportam a igreja católica.
No caso das propostas de despenalização dos actos de interrupção da gravidez (a que D. José teima em chamar li­be­ra­li­zação do aborto), o cardeal não hesita em usar palavras redondas importadas do vocabulário típico dos mo­vi­mentos pró-vida. «Num momento em que Portugal precisa de convergir, não sei se é prudente avançar com uma nova consulta popular à despenalização do aborto. A questão é muito dolorosa e fracturante. Será mais uma página do drama e irá dividir ainda mais a sociedade portuguesa». O exagero verbal usado como arma de arremesso está patente nas palavras de D. José. Mesmo para o senso comum, a proposta de lei de alteração do quadro de legislação do aborto é de um grande comedimento, fica longe das práticas legais reconhecidas noutros países europeus e corresponde às preocupações de muitos casais católicos portugueses envoltos na vida moderna. A verdadeira questão não está em que a despenalização arrisque criar divisões graves na sociedade portuguesa. Mas porque representa um pequeno passo em frente no sentido da dissipação da névoa que a igreja católica, substantivamente integrista procura, a todo o custo, manter.
Duas linhas mais, para se referir a morte de João Paulo ll e o que depois se passou. A morte do cidadão Karol Wojtyla tem de ter a mesma compreensão natural que nos merecem todas as mortes e agonias dos outros cidadãos anónimos e comuns. A morte do Chefe de Estado do Vaticano deve ser tratada, a nível de Estado, segundo os protocolos estabelecidos para tais situações. O que aconteceu e continua a acontecer com os órgãos de comunicação social portugueses - públicos e privados - é uma vergonha para o nosso país. Trata-se de uma operação de contra-informação indecorosa que deve ser cruamente denunciada. Não só porque o branqueamento dos grandes crimes contra a humanidade de que a igreja de João Paulo II se tornou responsável se pode obter assim tão facilmente. Nem apenas por ser prematura esta exibição dos poderes de uma so­ci­e­dade civil sem escrúpulos que programa os seus con­teúdos com base na sua experiência fatimeira e da «guerra fria». A igreja ainda não está a operar em terra conquistada. O que vimos são crónicas das trevas medievais, a provar que a igreja portuguesa não é capaz de ultrapassar o peso das tradição. Uma vez mais, a hierarquia católica não hesitou em utilizar a pior das demagogias, a da imagem, para apelar ao fatalismo populista, para branquear a sua própria história papa e para revalorizar comportamentos e liturgias de que declara, quando lhe convém, desejar afastar-se.
A hierarquia nunca desiste de ocupar o primeiro lugar. É a filosofia do bá­culo doi­rado.


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