Tristeza que veio de Kiev
A canção portuguesa no Eurofestival não passou à fase final, e considero que esse facto foi a minha sorte como a de muitos outros: não tive de suportar uma segunda vez a vergonha que senti percorrer-me quando da sua apresentação no palco de Kiev. Não quero deixar de registar que designar «canção» aquele ribombar de vozes e sons vociferados a partir de um microtexto praticamente inexistente é uma espécie de generosidade a que me sinto obrigado pela inevitável necessidade de chamar alguma coisa àquilo e de o caso ter ocorrido no decurso de um chamado festival dito de canção. Aliás, é bem sabido haver uma tendência para fazer deslizar a canção que o é de acordo até com o seu étimo, que valoriza o canto, para um outro produto muito audiovisual, mas bem mais visual que áudio, aparentado com um número de circo, em certos casos, com um momento de show em casino de Las Vegas, noutros. Nada disto é novidade, de resto: o que ainda nos arranha é assistirmos a que uma intervenção como a que vimos na passada quinta-feira surja com foros de representação portuguesa em matéria de música. Já ouvi, e ouvi-o a quem de festivais tem experiência e memória, que aquela não foi a pior das canções já enviada ao Eurofestival com a etiqueta de «Portugal» tácita ou mesmo expressamente colada. Pois não o terá sido; mas não sinto que essa circunstância, que ainda assim me suscita alguma dúvida, abrande a quota-parte que me cabe no enorme embaraço, para não falar de humilhação, palavra mais adequada, que muitos outros telespectadores portugueses terão sentido perante o que direi ter sido uma grande infelicidade, para ser generoso nas palavras. Circunstância atenuante terá sido o facto de outras canções, isto é, de outras implícitas representações nacionais, terem afinado pelo mesmo tristíssimo diapasão. A questão é que, como há muito se sabe e se repete, as desgraças alheias não mitigam as nossas. Dir-se-á, e bem, que num concurso dominado por interesses comerciais, facto que não é segredo para ninguém, nunca as canções portuguesas têm, de qualquer modo, probabilidades de conseguir mais votos que os possibilitados por razões de «boa vizinhança» e eventuais influências de núcleos de emigração portuguesa num ou noutro país. Mas também se sabe que há várias maneiras de não ganhar e, já agora, bem podia ter-nos cabido uma melhor maneira.
A ocupação americana
Porém, para lá da nossa magoazinha patriótica há um outro e maior motivo para que o Eurofestival nos tenha sido um factor de melancolia, se não de alguma indignação: a evidência de que, tendo nascido para ser uma expressão da canção europeia, se tornou em enorme parte num colonato do pop/rock anglo-americano, de facto mais americano que anglo. Esta espécie de vassalagem bacoca tem mesmo o impudor de ultrapassar o âmbito musical para se alargar ao uso da língua inglesa, com mais rigor se diria que da «língua americana», nas representações dos países escandinavos, da Macedónia, da Sérvia, de alguns outros. Também da portuguesa, é claro. Já não se trata apenas, pois, da metamorfose do canto em espectáculo mais para os olhos que para ou ouvidos, de afastar da canção a componente de poesia, é mais que isso: é a Europa, través de um organismo representativo e responsável como é a UER, a abdicar de uma área importante do seu perfil musical e a dar claro sinal de capitulação perante uma autêntica ocupação norte-americana no território da música ligeira. E não se diga que se trata apenas de uma questão de estilos e de ritmos: trata-se de facto de modelos de comportamento subjacentes, de extensões do que dantes se designava por «american way of life» e agora, mais romanticamente, por «sonho americano». O que até seria simpático se, por várias razões e diversos caminhos, o sonho americano não resultasse de facto em pesadelo para o resto do mundo, a Europa não constituindo excepção a essa regra. Quem pense que escrevendo-se isto a propósito de uma relativa ninharia se está a incorrer em exagero, recorde que, como lembrou Guerra Carneiro, «isto anda tudo ligado».
Chegados aqui, bem podemos concluir que mais grave que a mutação da canção, forma musical para ouvir, em espectáculo dominado pelo factor visual, é a troca da marca europeia pelo fascínio pacóvio perante a invasão americana e os mitos que lhe estão apensos. Que os países que neste Eurofestival ainda mostraram resistir a esse contágio se situem quase todos para lá da Alemanha, terá algum significado no plano da estima pelos valores próprios. Europeus. Ainda.
A ocupação americana
Porém, para lá da nossa magoazinha patriótica há um outro e maior motivo para que o Eurofestival nos tenha sido um factor de melancolia, se não de alguma indignação: a evidência de que, tendo nascido para ser uma expressão da canção europeia, se tornou em enorme parte num colonato do pop/rock anglo-americano, de facto mais americano que anglo. Esta espécie de vassalagem bacoca tem mesmo o impudor de ultrapassar o âmbito musical para se alargar ao uso da língua inglesa, com mais rigor se diria que da «língua americana», nas representações dos países escandinavos, da Macedónia, da Sérvia, de alguns outros. Também da portuguesa, é claro. Já não se trata apenas, pois, da metamorfose do canto em espectáculo mais para os olhos que para ou ouvidos, de afastar da canção a componente de poesia, é mais que isso: é a Europa, través de um organismo representativo e responsável como é a UER, a abdicar de uma área importante do seu perfil musical e a dar claro sinal de capitulação perante uma autêntica ocupação norte-americana no território da música ligeira. E não se diga que se trata apenas de uma questão de estilos e de ritmos: trata-se de facto de modelos de comportamento subjacentes, de extensões do que dantes se designava por «american way of life» e agora, mais romanticamente, por «sonho americano». O que até seria simpático se, por várias razões e diversos caminhos, o sonho americano não resultasse de facto em pesadelo para o resto do mundo, a Europa não constituindo excepção a essa regra. Quem pense que escrevendo-se isto a propósito de uma relativa ninharia se está a incorrer em exagero, recorde que, como lembrou Guerra Carneiro, «isto anda tudo ligado».
Chegados aqui, bem podemos concluir que mais grave que a mutação da canção, forma musical para ouvir, em espectáculo dominado pelo factor visual, é a troca da marca europeia pelo fascínio pacóvio perante a invasão americana e os mitos que lhe estão apensos. Que os países que neste Eurofestival ainda mostraram resistir a esse contágio se situem quase todos para lá da Alemanha, terá algum significado no plano da estima pelos valores próprios. Europeus. Ainda.