Sim à paz! Não à militarização!

Pedro Guerreiro
«Por­tugal rege-se nas re­la­ções in­ter­na­ci­o­nais pelos prin­cí­pios da in­de­pen­dência na­ci­onal, do res­peito dos di­reitos do homem, dos di­reitos dos povos, da igual­dade entre os Es­tados, da so­lução pa­cí­fica dos con­flitos in­ter­na­ci­o­nais, da não in­ge­rência nos as­suntos in­ternos dos ou­tros Es­tados e da co­o­pe­ração com todos os ou­tros povos para a eman­ci­pação e o pro­gresso da hu­ma­ni­dade.»

«Por­tugal pre­co­niza a abo­lição do im­pe­ri­a­lismo, do co­lo­ni­a­lismo e de quais­quer ou­tras formas de agressão, do­mínio e ex­plo­ração nas re­la­ções entre os povos, bem como o de­sar­ma­mento geral, si­mul­tâneo e con­tro­lado, a dis­so­lução dos blocos po­lí­tico-mi­li­tares e o es­ta­be­le­ci­mento de um sis­tema de se­gu­rança co­lec­tiva, com vista à cri­ação de uma ordem in­ter­na­ci­onal capaz de as­se­gurar a paz e a jus­tiça nas re­la­ções entre os povos.»


in Ar­tigo 7.º da Cons­ti­tuição da Re­pú­blica Por­tu­guesa

Vale a pena reler os dois primeiros pontos do artigo da Constituição portuguesa relativo às relações internacionais para compreender o quanto a chamada «constituição europeia» e a actual militarização da União Europeia (UE) estão em contradição com o que a Lei Fundamental do País consagra de forma clara.
A chamada «constituição europeia» alicerça o perigoso processo, em curso, de militarização da União Europeia - e sublinhe-se, como pilar europeu da NATO -, subordinando a política externa de Portugal à estratégia das grandes potências, colocando em causa a existência de uma política autónoma e soberana do nosso País.
A «constituição europeia» preconiza que a «política comum de segurança e defesa» da UE «res­peita as obri­ga­ções de­cor­rentes do Tra­tado do Atlân­tico Norte para certos Es­tados-mem­bros que con­si­deram que a sua de­fesa comum se re­a­liza no quadro da Or­ga­ni­zação do Tra­tado do Atlân­tico Norte, e é com­pa­tível com a po­lí­tica comum de se­gu­rança e de­fesa es­ta­be­le­cida nesse quadro», ou seja da NATO. E in­siste: «os com­pro­missos e a co­o­pe­ração neste do­mínio res­peitam os com­pro­missos as­su­midos no quadro da Or­ga­ni­zação do Tra­tado do Atlân­tico Norte, que, para os Es­tados que são mem­bros desta or­ga­ni­zação, con­tinua a ser o fun­da­mento da sua de­fesa co­lec­tiva e a ins­tância apro­priada para a con­cre­tizar» (1).
A «constituição europeia» estabelece que os «Es­tados-mem­bros com­pro­metem-se a me­lhorar pro­gres­si­va­mente as suas ca­pa­ci­dades mi­li­tares» e ins­titui uma «agência no do­mínio do de­sen­vol­vi­mento das ca­pa­ci­dades de de­fesa, da in­ves­ti­gação, da aqui­sição e dos ar­ma­mentos (Agência Eu­ro­peia de De­fesa), para iden­ti­ficar as ne­ces­si­dades ope­ra­ci­o­nais, pro­mover as me­didas ne­ces­sá­rias para as sa­tis­fazer, con­tri­buir para iden­ti­ficar e, se ne­ces­sário, exe­cutar todas as me­didas úteis para re­forçar a base in­dus­trial e tec­no­ló­gica do sector da de­fesa, par­ti­cipar na de­fi­nição de uma po­lí­tica eu­ro­peia de ca­pa­ci­dades e de ar­ma­mento...» (1).
Entre as possíveis missões que a «constituição europeia» define no âmbito da «política comum de segurança e defesa» (PCSD) salientam-se: as «ac­ções de de­sar­ma­mento», de «as­sis­tência mi­litar», de «pre­venção de con­flitos e de ma­nu­tenção de paz», de «forças de com­bate para gestão de crises», todas podendo integrar-se e contribuir para a denominada «luta contra o ter­ro­rismo» (2).
Para se ter consciência do real alcance do que a «constituição europeia» consagra no plano militar - que se procurou caracterizar pela transcrição dos exemplos anteriores -, há que obrigatoriamente conhecer e analisar o actual processo de militarização da UE, que, aliás, tem sido concretizado de forma acelerada desde 1999.
Um dos componentes mais significativos do processo de militarização da UE é a sua «estratégia europeia de segurança», decidida em Dezembro de 2003. Adoptando um mimetismo quase absoluto relativamente à chamada «doutrina Bush» e ao novo conceito estratégico da NATO, a «estratégia europeia de segurança» (I) aponta as «prin­ci­pais ame­aças», entre estas: o «ter­ro­rismo», «a pro­li­fe­ração das armas de des­truição ma­ciça», os «con­flitos re­gi­o­nais» e o «fra­casso dos Es­tados». (II) Define os «ins­tru­mentos» para «a gestão de crises e a pre­venção de con­flitos», ou seja: «ac­ti­vi­dades de na­tu­reza po­lí­tica, di­plo­má­tica, civil e mi­litar, co­mer­cial e em ma­téria de de­sen­vol­vi­mento». (III) Advoga a aplicação de uma «cul­tura es­tra­té­gica que pro­mova uma in­ter­venção pre­coce, rá­pida e, se ne­ces­sário, ro­busta». (IV) E exige a mobilização de mais recursos para transformar as «forças ar­madas em forças mó­veis e fle­xí­veis». (V) Tudo no respeito dos «acordos per­ma­nentes entre a UE e a NATO, em es­pe­cial o acordo Berlim Mais» (3), que «re­forçam a ca­pa­ci­dade ope­ra­ci­onal da UE e cons­ti­tuem o quadro em que se in­sere a par­ceria es­tra­té­gica entre as duas or­ga­ni­za­ções no plano de gestão de crises, re­flec­tindo a de­ter­mi­nação de ambas em en­frentar os de­sa­fios do novo sé­culo». E - se mais palavras fossem necessárias -, insiste: «nada pode subs­ti­tuir a re­lação tran­sa­tlân­tica. Ac­tu­ando em con­junto, a União Eu­ro­peia e os Es­tados Unidos podem ser no mundo uma ex­tra­or­di­nária força be­né­fica» - acrescento eu -, para o imperialismo.

Des­montar de­tur­pa­ções,
ma­ni­pu­la­ções e eu­fe­mismos (4)


De forma mais ou menos descarada, utilizando ou não eufemismos, as intenções quanto à militarização da UE estão expressas em documentos, em inúmeras decisões e nas operações até ao momento realizadas no âmbito da PCSD, de que é exemplo a «Operação militar da UE na Bósnia-Herzegovina – ALTHEA», ou seja, a substituição da NATO pela UE no comando das tropas de ocupação deste país dos Balcãs, saliente-se, que no momento em que os EUA se confrontam com a resistência iraquiana à ocupação do seu País.
A «constituição europeia» alicerça as bases institucionais deste processo de militarização da União Europeia, subordinada à NATO.
O objectivo não será apenas o aprofundar a participação e papel dos membros europeus da NATO nesta organização militar, mas igualmente o arrastar e amarrar todos os países da UE não membros da NATO à sua dinâmica, obviamente segundo os interesses e a direcção das grandes potências europeias - Alemanha, França e Grã-Bretanha -, que, ultrapassando contradições, dificuldades e antagonismos entre si, dominando a UE e impondo-a como «interlocutor», procuram reforçar as suas posições no quadro da concertação/rivalidade com os EUA.
Daí toda uma «estratégia de segurança europeia» vocacionada para a criação de forças militares que tenham capacidade de intervir em qualquer parte do mundo, «precocemente», «rapidamente» e de forma «robusta» - eufemismos para a «guerra preventiva», para a agressão militar.
Ou seja, está em marcha a concretização de uma política da UE, dita de «defesa», mas que mais não visa do que agredir a soberania dos Estados e dos povos no mundo, praticando a ingerência e o intervencionismo militar, fazendo a guerra, sempre que os interesses das grandes potências europeias e dos grandes grupos económico-financeiros - que os seus governos representam -, estejam em causa.
A militarização da UE é a medida da ambição do grande capital na Europa: partilhar com os Estados Unidos da América o domínio e a exploração no mundo. Por isso a UE adoptou como seu o conceito estratégico da NATO, decidido na Cimeira de Washington, em 1999. Aliás, Cimeira da NATO que apontou como objectivo a militarização da UE, como seu pilar europeu. Processo de militarização da UE a que foi decidido dar inicio, precisamente, em 1999.
No fundo, os principais promotores da «constituição europeia» - as grandes potências e o grande capital na Europa - procuram «legitimar» as suas ambições imperialistas sob o chapéu político-jurídico da chamada «constituição europeia», avançando na transformação da UE num bloco político-militar imperialista, com uma política dita de «defesa», articulada com a NATO ou a ela submetida. Bloco político-militar, apresentado por vezes em contraposição aos EUA, mas que agiria de facto como seu braço auxiliar.
A militarização da UE é parte indissociável da actual integração capitalista europeia. Ela integra e é base e componente fundamental deste processo, a par do reforço do federalismo sob o domínio das grandes potências e da imposição do neoliberalismo, sendo o seu «braço armado».
Como afirmamos, «para os povos do mundo só pode ser motivo de preocupação o facto de, perante os desafios e as questões cruciais a que o nosso tempo tem de responder – a paz, a cooperação e o desenvolvimento de todos os povos, a independência e a soberania dos Estados -, se estar a erguer uma potência económica, política e militar virada para o confronto concorrencial, por mercados, matérias-primas e mão-de-obra, por capital e domínio político, que integra articulações, alianças e acordos de partilha com os EUA e o Japão» (5).
Para os comunistas, os democratas e defensores da paz, a rejeição da chamada «constituição europeia» é um imperativo!

________

(1) In Ar­tigo I-41.º, 2. da dita «cons­ti­tuição eu­ro­peia».
(2) In Ar­tigo III-309.º, 1. da dita «cons­ti­tuição eu­ro­peia».
(3) Acordo «Berlim Mais» de­fine os ór­gãos, pro­ce­di­mentos e me­ca­nismos de de­cisão pelos quais são es­ta­be­le­cidos os laços e in­ter­de­pen­dên­cias entre a «po­lí­tica comum de se­gu­rança e de­fesa» da UE e a NATO.
(4) Eu­fe­mismo, fi­gura de es­tilo com que se dis­farçam ideias de­sa­gra­dá­veis por meio de ex­pres­sões su­aves, in Di­ci­o­nário da Língua Por­tu­guesa.
(5) In Re­so­lução Po­lí­tica do XVII Con­gresso do PCP.


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