O HORROR

«Mais de 200 mil pes­soas ti­veram morte ime­diata. Mais de 150 mil fe­ridos fi­caram con­de­nados à morte»

No dia 6 de Agosto de 1945 – pre­ci­sa­mente três meses após a der­rota e a ren­dição da Ale­manha nazi – o go­verno dos Es­tados Unidos da Amé­rica lançou uma bomba ató­mica sobre Hi­ro­xima. Três dias de­pois, nova bomba era lan­çada sobre Na­ga­sáqui. Foi a pri­meira vez (e, até ver, única) que al­guém uti­lizou a bomba ató­mica contra po­pu­la­ções. Tratou-se de um crime he­di­ondo, do mais bár­baro, cruel e mons­truoso mor­ti­cínio da his­tória uni­versal. Mais de 200 mil pes­soas ti­veram morte ime­diata. Mais de 150 mil fe­ridos fi­caram con­de­nados à morte.
Não obs­tante não haver nada que possa jus­ti­ficar ta­manha bar­ba­ri­dade, os res­pon­sá­veis pelo ho­lo­causto, desde então até hoje, re­petem até à exaustão aquilo a que chamam as «duas ra­zões» que es­ti­veram na origem da de­cisão: «exi­gên­cias mi­li­tares» e «ne­ces­si­dade de evitar mi­lhares de mortes de ame­ri­canos e ali­ados». E foi a partir destas «duas ra­zões» que pro­cla­maram que «os bom­bar­de­a­mentos foram mi­li­tar­mente ine­vi­tá­veis, de­mo­cra­ti­ca­mente in­dis­pen­sá­veis e hu­ma­ni­ta­ri­a­mente ne­ces­sá­rios» (su­blinhe-se que esta frase, de tantas vezes usada por su­ces­sivos pre­si­dentes dos EUA para jus­ti­ficar crimes mas­sivos, quase po­derá ser to­mada como re­frão do hino na­ci­onal da­quele país). Ainda que as «duas ra­zões» fossem ver­da­deiras, nem assim o bár­baro mor­ti­cínio seria jus­ti­fi­cável. Acon­tece, no en­tanto, que ambas as «ra­zões» são falsas.

Come­cemos pelas «exi­gên­cias mi­li­tares». São elu­ci­da­tivas as de­cla­ra­ções sobre a ma­téria pro­fe­ridas pelo al­mi­rante norte-ame­ri­cano W. Le­ahry: «Os ja­po­neses es­tavam der­ro­tados e prestes a ca­pi­tular. O uso desta arma bár­bara (…) não trouxe ne­nhuma con­tri­buição ma­te­rial ao nosso com­bate contra o Japão. Os EUA, como pri­meiro país a uti­lizar esta bomba, adop­taram normas éticas se­me­lhantes às dos bár­baros da Alta Idade Média» (anote-se que «fazer re­gressar o Japão à Idade da Pedra», era o ob­jec­tivo ex­presso pelo Chefe da Força Aérea dos EUA, ge­neral Curtis Le May). Acresce que é hoje um dado in­con­tro­verso que Harry Truman sabia que o im­pe­rador do Japão tinha de­ci­dido render-se desde 20 de Junho de 1945 e que, através do em­bai­xador ja­ponês em Mos­covo, havia en­ce­tado con­tactos com a URSS vi­sando pôr fim à guerra. E a fal­si­dade das «exi­gên­cias mi­li­tares» in­vo­cadas pelo pre­si­dente dos EUA é ainda mais evi­dente se a tudo isto se acres­centar o facto al­ta­mente re­le­vante de a Ale­manha nazi ter ca­pi­tu­lado em Maio e de o Japão ter per­dido quase toda a avi­ação e ma­rinha e de os sete mil raids dos B29 norte-ame­ri­canos terem des­tro­çado a de­fesa anti-aérea ja­po­nesa – e não só: o bom­bar­de­a­mento de Tó­quio, em 10 em Março, havia pro­vo­cado mais de 120 mil mortos e fe­ridos…

Tudo isto torna óbvia a fal­si­dade da se­gunda razão in­vo­cada pelos as­sas­sinos - «ne­ces­si­dade de evitar mi­lhares de mortes de ame­ri­canos e ali­ados». Em todo o caso, os res­pon­sá­veis pelo crime sen­tiram ne­ces­si­dade de quan­ti­ficar as «vidas pou­padas» pelas duas bombas ató­micas. A dança dos nú­meros a que pro­ce­deram é, por si só, elu­ci­da­tiva: Truman co­meçou por in­formar que o lan­ça­mento das bombas «pou­para a vida a 250 mil ame­ri­canos»; logo a se­guir, cor­rigiu: afinal, ti­nham sido «pou­padas 500 mil vidas (ame­ri­canas e ali­adas) das quais 300 mil ame­ri­canas»; pouco de­pois, o nú­mero subiu para «meio mi­lhão de vidas ame­ri­canas pou­padas» e viria a quedar-se na conta ar­re­don­dada de «um mi­lhão de vidas salvas». Chur­chil, al­ta­mente ex­pe­ri­ente na ma­téria, deu-lhe uma pre­ciosa ajuda: elevou o nú­mero de «vidas pou­padas» para «um mi­lhão e du­zentas mil». E o ma­re­chal bri­tâ­nico Arthur Harris es­ta­be­leceu o nú­mero ofi­cial: «o lan­ça­mento das bombas sobre Hi­roshima e Na­ga­sáqui poupou três a seis mi­lhões de vidas»…
Na­tu­ral­mente, esta ânsia de jus­ti­ficar o acto mons­truoso nada tinha a ver com pro­blemas de cons­ci­ência. «O acon­te­ci­mento mais im­por­tante da His­tória» - assim clas­si­fi­cava Truman o bom­bar­de­a­mento das duas ci­dades ja­po­nesas – fora fri­a­mente per­pe­trado e vi­sava ob­jec­tivos que de há muito po­vo­avam as mentes de Truman e Chur­chil e nada ti­nham a ver com a de­fesa de vidas hu­manas. Bem pelo con­trário.

Truman, ainda se­nador, e numa al­tura em que Ro­o­se­velt con­si­de­rava a hi­pó­tese de ajudar os so­vié­ticos – que, então, su­por­tavam todo o peso do exér­cito nazi – ob­jec­tara assim: «Se virmos que a Ale­manha está em vias de ga­nhar a guerra, da­remos uma ajuda à Rússia; se virmos que a Rússia vai ga­nhar, então te­remos que ajudar a Ale­manha. O im­por­tante é que russos e ale­mães se matem o mais pos­sível uns aos ou­tros». E é nesta pers­pec­tiva que se en­quadra a uti­li­zação da bomba ató­mica contra po­pu­la­ções civis. O Exér­cito Ver­melho, cuja in­ter­venção fora de­ter­mi­nante para a der­rota dos nazis, fora o pri­meiro a en­trar em Berlim e era ne­ces­sário lançar um aviso à União So­vié­tica. «A posse e o uso da bomba tor­nará a Rússia mais con­tro­lável» - ar­gu­men­tava o ma­re­chal Arthur Harris que, em Fe­ve­reiro desse ano, cum­prindo uma ordem de Chur­chil, bom­bar­deara e des­truíra Dresde (ci­dade alemã sem quais­quer alvos mi­li­tares e des­pro­vida de quais­quer de­fesas) pro­vo­cando 120 mil ví­timas. Além disso, se­gundo Chur­chil (ci­tado pelo ge­neral Alan Brooke) «nós tí­nhamos agora nas mãos qual­quer coisa que res­ta­be­le­ceria o equi­lí­brio com os russos (…) Chur­chil ima­gi­nava-se já em vias de li­quidar os cen­tros in­dus­triais so­vié­ticos e todas as zonas com forte con­cen­tração po­pu­la­ci­onal. Ele via-se como único de­tentor dessas bombas, capaz de as lançar onde qui­sesse, tor­nado todo po­de­roso e em con­di­ções de ditar as suas von­tades a Sta­line»
En­tre­tanto, em Hi­ro­xima e Na­ga­sáqui o horror con­ti­nuava: os fe­ridos mor­riam, as bombas ató­micas con­ti­nu­avam a matar.