Fazer o bem mas ... olhar a quem!

Jorge Messias
Recentemente e após uma longa fase de esquecimento, voltou a ouvir-se falar na urgente questão da instalação de uma rede hospitalar de camas para cuidados continuados. A informação fornecida foi escassa mas permite imaginar as dimensões reais deste problema nacional.
Contaram os jornais que o Diário de Re­pú­blica tinha finalmente publicado a regulamentação da Rede de Cuidados Continuados em Saúde. A divulgação da notícia coincidiu, entretanto, com o anúncio de dois dados laterais curiosos. O governo instalara, nos cinco principais hospitais públicos do país e como base de uma rede que virá a cobrir todo o território nacional, equipas de gestão de altas ou seja, tal como é afirmado oficialmente, estruturas interdisciplinares com poderes para «interromper internamentos hospitalares desnecessários que muitas vezes se pro­longam por falta de res­postas no ex­te­rior».
A outra notícia que interessa destacar é a de que o Ministério da Saúde anunciou ter já concluído os cálculos de uma tabela dos preços a pagar ao sector privado pela ocupação de camas destinadas aos utentes dos cuidados continuados. O preçário tem valores que variam de acordo com a natureza dos serviços, podendo oscilar entre 34 e 83 euros, por dia e por cama. Os preços-base deverão ser revistos anualmente.
Mal foi conhecida a tabela, logo surgiram críticas e contestações por parte das Misericórdias e dos hospitais privados. Isto, porque a oferta do Estado fica longe dos preços praticados quer pelo Grupo Misericórdias-Saúde, quer pelos lob­bies privados do sector, como os Melos, o BES ou o Grupo Pestana. O Estado terá de pagar mais. Ainda que se saiba que o novo regulamento prevê uma solução financeira mista em que participam o sector público e o próprio doente «num esquema semelhante ao que é praticado pela IPSS e tem em conta a declaração de rendimentos». A esta inovação, chama o governo «pedagogia de envolvimento às famílias».

A ex­clusão por via legal

A instalação da rede de camas de cuidados continuados impõe-se, sobretudo pela urgente necessidade do Estado português fazer alguma coisa que alivie o sofrimento de dezenas de milhares de idosos com pensões miseráveis. Portugal conta, actualmente, com cerca de l,7 milhões de homens e mulheres com mais de 65 anos de idade. Desse grupo, segundo estimativas oficiais, aproximadamente 107 mil cidadãos são pobres, doentes e dependentes de terceiros. Muitos deles, vítimas de um abandono total, recorrem ao estratagema dos serviços de urgência e a sucessivos reinternamentos hospitalares. Em 2003, registaram-se 76 mil destes casos de retorno aos hospitais. São casos que identificam uma odiosa bolsa de miséria gerada no interior da sociedade. Subprodutos de um frio e calculado desprezo político pela condição humana.
É por isso necessário exercer-se uma apertada vigilância em torno da actuação das equipas de gestão de altas criadas pelo ministério de Correia de Campos. Não seria a primeira vez que no governo de Sócrates se tenta resolver por via administrativa um problema escandalosamente real. Há muitos exemplos anteriores, como as descidas das cotas de desemprego, o encolher das listas de espera, as grandes obras no papel ou os êxitos no combate à iliteracia e à pobreza. As equipas das altas podem ocultar a intenção de criarem um «mercado da exclusão» que permita branquear estatísticas e fornecer aos privados uma camada consumidora rentável, recrutada entre os pensionistas mais ricos. Esta hipótese pode ser quantificada.
No topo da escala concebida pelas hol­dings de saúde assistida dos grupos privados situam-se os pensionistas com altas pensões. Nessa fatia de mercado destacam-se os casos dos condóminos para idosos construídos pelo Grupo José de Melo em parceria com a Associação Nacional de Farmácias. Cada unidade deste tipo custa à volta de 20 milhões de euros. Numa primeira fase, há 400 camas e 70 apartamentos (Junqueira, Parque das Nações e Leça da Palmeira) instalados e em funcionamento. Os utentes pagam uma jóia inicial que oscila entre os 15 mil e os 27 mil e 500 euros).
Depois, liquidam as mensalidades que vão dos 1000 aos 1500 euros.
O contrato é celebrado por três anos e os apartamentos são de usufruto dos utentes mas não sua propriedade. Mas é possível contratar-se assistência vitalícia, caso se possa dispor de uma verba que oscilará entre 70 mil e 250 mil euros.
Este é o tipo de negócio que verdadeiramente interessa ao Estado Banqueiro, às Santas Casas e aos benfeitores milionários. Trabalhando em rede, é para eles necessário excluir o peso inútil dos miseráveis. Entre os ricos há dinheiro a jorros. Mas é preciso saquear o mercado e acumular capital.
Sob a capa da ética cristã.


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