A defesa da humanidade no modelo da China

Zillah Branco
Tivemos a oportunidade de entrevistar Elias Jabbour, 30 anos, jovem académico da Universidade de São Paulo que recebeu o seu título de mestrado em Geografia Humana com uma tese sobre o desenvolvimento da China. Esteve naquele país durante vários meses recolhendo informações e em visita aos grandes empreendimentos em obras públicas que traduzem o grande esforço de unificação do território e de criação de estruturas de trabalho e de vida para uma população de 1,3 mil milhões de habitantes. O autor realizou uma abordagem ampla, que acompanha o caminho dialéctico do moderno desenvolvimento daquela economia continental, sob a orientação do professor Armen Mamigoniam que registou na apresentação do livro «a finalidade de decifrar os segredos do modelo socialista de mercado, com espantosas taxas de crescimento levando a China a dobrar de tamanho praticamente em sete anos, mudando rapidamente a geografia do mundo com a criação de um novo pólo, para onde se dirigem e saem fluxos financeiros, económicos, políticos e culturais crescentes, criando fortes movimentos gravitacionais».
Com a perseverança habitual aos comunistas de todo o mundo e com o exemplo de coerência e paciência dos orientais, o PCCh assume a construção do socialismo, cujo o período denominado como a «fase primária», anterior à implantação do novo sistema, durará pelo menos até ao ano de 2050 quando terá condições de evoluir com independência.
As tarefas revolucionárias nesta fase devem responder à demanda do povo como uma «higiene diária», combatendo a corrupção e os problemas gerados no convívio com o sistema capitalista mundial.
A estratégia de desenvolvimento projectada há 20 anos já resultou positivamente para superar os graves problemas da China – que tendo 22% da população mundial e apenas 6% de recursos hídricos e 7% da terra cultivável do planeta – melhorou o abastecimento de alimentos e vestuário do seu povo, reduziu a pobreza e caminha para dar a todos uma vida modesta, mas segura, com valores que o sistema capitalista não alcança.
No que se refere ao desenvolvimento do país, em 1988 o PIB da China era metade do da Rússia e em 1998 era o contrário, em 20 anos passou da igualdade com a Índia para duas vezes mais. Em 2003 a China ocupou o primeiro lugar no mundo na produção de mais de cem produtos industriais e produziu 29% das televisões, 24% das máquinas de lavar, 30% dos aparelhos de ar condicionado, 50% dos telefones, 50% das câmaras de filmar, 75% dos relógios, 73% dos tractores, tem o primeiro lugar na produção de aço (250 milhões de toneladas/ano) que será reduzida para eliminar a poluição. O crescimento económico da China mantém um ritmo anual acima de 9,3% com a criação de milhões de empregos.

Como foi pos­sível, à China, deixar uma or­ga­ni­zação so­cial do tipo das Co­munas Po­pu­lares es­sen­ci­al­mente cam­po­nesa, e en­frentar uma fase em que a pro­dução é or­ga­ni­zada de acordo com o mer­cado de con­sumo nos moldes ca­pi­ta­listas? Não es­tará acen­tu­ando a mi­séria que herdou de um pe­sado pas­sado feudal?

Elias Jab­bour: A resposta deve referir a política, pois a base social do PCCh foi, e ainda é, definida pelos mais de 700 milhões de camponeses. Para lhes assegurar uma vida melhor impõe-se a garantia de estabilidade política duradoura (afinal os camponeses chineses foram durante milénios responsáveis por quedas dinásticas e os principais actores da Revolução de 1949).
Outra questão é sobre a natureza socialista das Comunas Populares extintas em 1979, dando origem aos contratos de responsabilidade entre uma ou mais famílias com o Estado, o qual passou a absorver as quotas de grãos por um baixo preço deixando os excedentes para venda directa no mercado. Esta medida, adoptada por Deng Xiaoping, converge para o modelo – NEP – apresentado por Lenine em 1921, considerando que nenhuma relação de produção de tipo socialista é possível sem que as forças produtivas se tenham desenvolvido de modo a promover transformações qualitativas nas relações de produção. Entre 1949 e 1979 as safras agrícolas cresciam na China em ritmo muito pequeno. Ao contrário, no antigo modelo soviético a agricultura tinha papel central no processo de acumulação primitiva socialista, e as quedas na produção da agricultura redundavam em redução no ritmo de industrialização.
O que Deng Xiaoping percebeu em 1978, quando a mão-de-obra excedente no campo foi transferida para as chamadas Empresas de Cantão e Povoado (ECP’s), foi que a capacidade empreendedora e milenar do camponês chinês – herança de mais de 3700 anos, quando as bases da divisão social do trabalho surgiram na China resultando no surgimento do comércio e do mercado como instituição – poderia ser o motor do processo de modernização do país, do fim dos problemas de abastecimento alimentar e da renovação do pacto político que levou os comunistas chineses ao poder em 1949, e na consequente garantia de estabilidade política duradoura. As ECP`s são empresas colectivas onde o ente público directo é o município e actualmente elas estão presentes também em grandes associações com empresas estrangeiras para absorção de tecnologia, como é o caso da associação de uma ECP com a Empresa Brasileira de Aeronáutica (EMBRAEr) para fabricação de aviões.
Os números não mentem: entre 1978 e 1984 a safra agrícola aumentou mais que entre 1956 e 1976, o acúmulo individual serviu como base de poupança para o consumo de produtos industrializados e mais de 400 milhões de pessoas saíram da condição de extrema miséria. Promoveu-se a urbanização do meio rural e a criação de indústrias que exportam produtos baratos para todo o mundo, principalmente os têxteis, e foi evitada a migração de milhares de camponeses para o litoral. As reformas de 1978 no campo e suas consequências benéficas foram responsáveis pela manutenção do status quo do PCCh durante a contra-revolução de Junho de 1989, pois se os camponeses estivessem descontentes o regime fatalmente teria sucumbido como sucumbiram tantas dinastias chinesas ao longo do tempo.
Em ciências sociais é sempre bom fazer comparações, pois a Índia que o mundo capitalista pinta como um contraponto à China por ser uma «grande democracia», apesar de ter obtido nos últimos anos altos índices de crescimento, não conseguiu incluir no mercado consumidor – proporcionalmente – o mesmo número de pessoas que incluiu a China, e mesmo nos Estados Unidos, o país que mais produz riquezas no mundo, cerca de 25 milhões de pessoas não consomem o valor calórico mínimo necessário para sua manutenção diária, segundo a Organização Mundial da Saúde.
Por fim, devemos ter em mente que a contradição é o motor do processo e que um país que cresce com as médias da China tem de conviver com problemas e buscar soluções. É assim o processo de desenvolvimento, logo, não me causam estranheza os problemas que a China enfrenta, muito pelo contrário, o facto de o país continuar crescendo é sinal de que as contradições que surgem estão sendo equacionadas.

A China, com tais ní­veis de de­sen­vol­vi­mento e cres­ci­mento eco­nó­mico, que lhe per­mitem ad­quirir a po­sição de maior com­prador dos tí­tulos da dí­vida norte-ame­ri­cana, não se es­tará a expor como con­tra­ponto ao im­pe­ri­a­lismo mun­dial?

Sim, claro, mas não somente pelo aspecto económico, que é principal. O contraponto ao imperialismo é natural para um país com a história milenar da China, que conta com um território de mais de 9 milhões de km2, que foi o império mais longevo da história, que foi a nação mais desenvolvida no mundo até ao início do século XIX e cuja linha de desenvolvimento histórico só foi rompida por um período de 109 anos (1840-1949). Do ponto de vista concreto, na medida em que a China se desenvolve como um imenso mercado consumidor, cria condições objectivas para a solução de questões nacionais pendentes na periferia do sistema, como é o caso de Cuba que ganhou fôlego novo com a ascensão chinesa, os casos da Venezuela e da Bolívia e da crescente e positiva presença chinesa em África. A título de exemplo para o leitor do Avante!, refira-se que em 2005 a China baixou a zero as alíquotas de importação aos 35 países mais pobres do mundo, deixando claro um movimento de longo prazo que busca isolar o imperialismo.
Outro aspecto do contraponto ao imperialismo está nas filosofias chinesas que nascem das boas relações entre homem e natureza nos férteis vales do país criando o taoísmo e o confucionismo, altamente tolerantes, ao contrário das surgidas no Mediterrâneo Oriental onde a péssima relação entre homem e natureza fez surgir filosofias intolerantes de tipo «Nova Canaã», «Destino Manifesto» e outras que ganharam expressão nas guerras imperialistas, incluindo a actual ocupação do Iraque. Aliás, Lao Tsé e Confúcio ainda têm grande papel na formação moral da China, enquanto que Sócrates e Platão foram devidamente esquecidos no Ocidente. A história é essencial para a compreensão do papel que a China poderá cumprir no mundo.

Que papel de­sem­penha o G-20 no con­texto mun­dial face às re­gras do jogo im­pe­ri­a­lista que do­minam o co­mércio in­ter­na­ci­onal?

Cumprem o papel de alterar a ordem injusta que se perpetua no comércio internacional há pelo menos dois séculos. Para se ter uma ideia de tal injustiça, 86% da produção industrial do globo e 82% do volume total das exportações estão concentradas nas mãos dos países ricos. Por outro lado mais de 70% da população mundial reside na periferia do sistema. Ou seja, esta situação cria condições para o surgimento de fenómenos como o terrorismo, cujo combate assenta até hoje em soluções entrelaçadas com os objectivos políticos do imperialismo, ao invés de ser atacado na sua raiz.
Agora, não podemos perder de vista o poder de divisão que o imperialismo tem ao nível de blocos regionais como o Mercosul. A raiz da fissura no bloco prende-se ao facto do seu maior país, o Brasil, não dispor de capacidade de financiamento de grandes obras de integração, expressão de uma política económica que restringe gastos, inibe exportações de capitais e não permite planejar défices comerciais com os nossos vizinhos. Logo, desprezar o inimigo principal neste processo de união entre os países pobres não é nada prudente.

O seu livro, «China: infra es­tru­turas e cres­ci­mento eco­nó­mico», recém lan­çado pela Edi­tora Anita Ga­ri­baldi em São Paulo, expõe um mapa das ZEE’s (Zonas Eco­nó­micas Es­pe­ciais) que de­sem­pe­nham um papel es­sen­cial na uni­fi­cação do ter­ri­tório, no aque­ci­mento da pro­cura in­terna e al­te­ração do con­texto so­cial. Como vê este per­curso para a con­so­li­dação do poder es­tatal chinês e para a su­pe­ração do fosso abismal, que ainda se­para ricos e po­bres, con­tra­di­tório com as metas so­ci­a­listas?

Desde que a Revolução Alemã liderada por Rosa Luxemburgo e Karl Liebnecht foi derrotada, abortando o projecto de revoluções simultâneas e isolando e sufocando a Rússia, as relações comerciais passaram a ter um papel central na transição do capitalismo para o socialismo no âmbito de cada experiência particular e também de toda a periferia. Outro elemento é o da necessidade, no socialismo, de desenvolvimento acelerado das forças produtivas como forma de diminuir a diferença existente com os países do centro do sistema e para isso é indispensável tecnologia avançada que, por sua vez, está concentradas nas mãos de alguns países. Logo, num ambiente internacionalizado, qualquer país que se proponha a construir o socialismo e não fizer uma abertura planeada e criteriosa para capitais e tecnologia estrangeiros estará fadado ao isolamento e ao fracasso.
O modelo soviético teve seu momento histórico, mas - gostemos ou não - acabou, não tem como voltar apesar dos êxitos alcançados. E mais, temos de ter uma atitude científica em relação ao mercado e analisá-lo como uma categoria histórica e, portanto, a sua superação (socialismo pleno) depende da viabilização de condições objectivas e não da subjectividade ou da vontade humana. Logo, no meu entendimento, a classificação «socialista» para um país passa entre outras coisas pela capacidade do partido dirigente de fazer com que as forças produtivas se desenvolvam mais e melhor. Sem desenvolvimento não existe combate à pobreza e sem desenvolvimento não há solução de contradições inerentes ao próprio processo de desenvolvimento. É ao que assistimos hoje na China onde o 11.º Plano Quinquenal estará voltado completamente para a solução de desigualdades originárias deste processo que já dura há 28 anos.
A título de exemplo fica o facto de o governo chinês já ter investido entre 1998 e 2005 mais de US$ 500 mil milhões em infra-estruturas somente no interior do país, ter abolido recentemente os impostos sobre a renda camponesa que duravam há mais de 2600 anos e, somente no presente ano, mais de US$ 50 mil milhões serão investidos em serviços básicos no campo. Isso é um grandioso exercício de poder revolucionário e não uma brincadeira como muitos pensam. Mas é sempre bom lembrar que com todos os limites que a correlação de forças no âmbito mundial apresenta, a China é campeã mundial de inclusão no mercado consumidor, está vivendo uma explosão de expressões artísticas e culturais (veja-se a quantidade de filmes chineses nos cinemas), os salários têm aumento anual médio de até 15% (muito acima da inflação) e o número de miseráveis no país tem sido reduzido ano após ano. Isto é algo que não ocorreu no mundo capitalista nas últimas duas décadas e o maior exemplo disto foi o processo de «africanização» e barbárie que está ocorrendo em muitos lugares da América Latina.
A distância entre o sonho socialista e sua realização concreta para um país com as dimensões da China é muito maior do que se imagina aqui no Ocidente mediado pela pressa e o imediato, além de que para Marx as três tarefas inerentes ao socialismo após sua implantação são a eliminação das diferenças entre campo e cidade, trabalho manual e intelectual e entre indústria e agricultura. Logo, para um país com mais de 700 milhões de camponeses, algumas décadas ou mais não serão suficientes para a conclusão destas tarefas.

Como vê as ex­pe­ri­ên­cias de Macau e Hong Kong, face às ques­tões de Taiwan, na im­plan­tação das ZEE’s e no con­vívio da so­ci­e­dade chi­nesa com fór­mulas do sis­tema ca­pi­ta­lista?

A elaboração da fórmula «um país, dois sistemas» foi concebida desde o início de sua circulação para solucionar a questão de Taiwan, pois além de mais espinhosa, as questões de Hong Kong e Macau eram de mais fácil solução pelo facto de que, tanto a Inglaterra quanto Portugal, não terem mais a força política que dispunham no momento em que anexaram estes territórios. O caso específico de Macau – que interessa para a comunidade portuguesa – tem sido marcado por um processo de desenvolvimento sem precedentes. Macau cresce a índices superiores à média nacional, impulsionado pelo turismo e o jogo legalizado.
A instalação das ZEE`s no litoral chinês tem desta forma contornos não somente económicos, mas também políticos, pois criou condições objectivas para a reunificação do território chinês ao criar uma zona de convergência económica entre a China continental e os chineses ultramarinos.
Acredito que a solução da questão de Taiwan vai ocorrer da mesma forma vista nos casos de Hong Kong e Macau: pela via da «sucção económica». Porém num espaço mais largo de tempo. Trocando por miúdos, a política de reforma e abertura iniciada em 1978, ao permitir em 1982 a instalação de Zonas Económicas Especiais (ZEE) – em primeiro lugar em quatro cidades voltadas estrategicamente para Hong Kong, Macau, Taiwan e as populações chinesas do sudeste asiático, depois em outras 14 cidades (1984) e em seguida para todo o litoral (1987) – , criou uma zona de convergência económica entre o continente chinês e os chineses ultramarinos que reuniam capital e tecnologia que interessavam à China. É bom assinalar que mais de 60% dos Investimentos Estrangeiros Directos (IEE) na China são provenientes de chineses ultramarinos.
Desta forma a província de Cantão tornou-se uma joint-ven­ture territorial com Hong Kong e hoje o vale do rio Yang Tsé abriga mais de 6000 empresas taiwanesas, e milhares de famílias taiwanesas nos últimos anos passaram a morar e fazer negócios em Xangai. Tal facto indica que Taiwan tem seu destino económico cada vez mais dependente do continente, mas a tarefa de reunificação não será fácil, pois quem patrocina aquele poder não é a Inglaterra nem Portugal, mas sim o maior poder corruptor da história da humanidade: o imperialismo norte-americano.

Nota: Elias Jab­bour é As­sessor para As­suntos Re­la­ci­o­nados ao De­sen­vol­vi­mento Eco­nó­mico da Pre­si­dência da Câ­mara de De­pu­tados (Bra­sília-DF), dou­to­rando e mestre em Ge­o­grafia Hu­mana pela FFLCH-USP e membro do Con­selho Edi­to­rial da Re­vista Prin­cí­pios, São Paulo, Brasil.


Mais artigos de: Temas

Reformados protestam na Covilhã

Cerca de cem pensionistas do sector dos lanifícios concentraram-se em protesto, dia 3, frente ao Centro de Saúde da Covilhã, contra a mudança no sistema de reembolso dos medicamentos totalmente comparticipados, introduzida no dia 1,numa acção do Sindicato Têxtil da Beira Baixa, STBB/CGTP-IN.Com as alterações, os...