A justificação da democratização da prática

A. Mello de Carvalho
A democratização real da prática desportiva, ou seja, aquela que permite o acesso de todos à actividade da sua escolha e ao desenvolvimento máximo das suas capacidades é, evidentemente, um objectivo difícil de alcançar. No nosso País, onde o atraso sócio-cultural global nos coloca nos últimos lugares da Europa, esta questão assume características próprias que têm de ser devidamente analisadas.
Muitos defendem que, para a atingir, é indispensável, logo à partida, liquidar todas as formas de desigualdade produzidas por um sistema social, em si, de carácter essencialmente segregador. Esta perspectiva, justa em si própria, tem, no entanto, um carácter facilmente manipulável por quem está interessado em manter exclusivamente os seus próprios privilégios, e evitar mudar o que quer que seja no sistema actual.
Ao partir de uma base perfeitamente justa, esta posição relega, de facto, a luta pela democratização do desporto para um futuro de contornos indefinidos, enquanto os trabalhadores, os seus filhos, e os elementos das outras camadas populares sem meios, vão ficando privados de uma prática cultural essencial. O manuseamento desta concepção tem, por isso, de ser feito com todo o cuidado pois, na prática, ao exigir que as condições sociais sejam plenamente justas para só depois pensar no desporto, cai-se, facilmente, num processo de agravamento da própria segregação social. É um pouco como dizer que quem passa fome não deve trabalhar para se alimentar porque... passa fome.
Por outro lado, esta atitude não toma em consideração dois outros importantes aspectos. Em primeiro lugar esvazia completamente o desporto da sua função de interventor directo na própria realidade. Naturalmente que a emancipação do indivíduo não passa fundamentalmente pela criação de condições do acesso à sua prática. Mas o desporto, como actividade cultural que é, pode e deve desempenhar um papel nesse processo.

Potencialidades de sinal contrário

Como factor de desenvolvimento individual, de expressão e criatividade, actividade socializadora e convivial, o desporto transporta em si enormes potencialidades de formação do Ser Humano e de aperfeiçoamento da sociedade. Pode ter, por isso, um papel indeclinável no seu processo de transformação, desde que haja um número significativamente elevado de homens e mulheres que nisso estejam empenhados.
Aliás, não é por acaso que ele é tão fortemente utilizado como elemento alienador das massas populares, pelas forças que lutam por manter as suas prerrogativas. Na verdade, não existem no desporto só aquelas potencialidades, aqui consideradas como constituindo possibilidades concretas de acção positiva. Na sua configuração, dinâmica e contraditória, o desporto também transporta potencialidades de sinal contrário. Nisso não é diferente das outras práticas sociais.
São estas características que as forças que tudo procuram «mudar», para tudo manterem na mesma, exploram a fundo, integrando o desporto na grande manobra de alheamento do indivíduo em relação à compreensão dos mecanismos profundos que comandam a vida social. Como fenómeno capaz de movimentar enormes massas de indivíduos, quer através do espectáculo desportivo, quer através de uma prática generalizada vazia de sentido social e de significado cultural, manifesta grande eficácia no desempenho daquelas funções.
Eis uma estranha forma de demonstrar as «qualidades» do desporto como prática social. Mas julgamos tornar claro, desta forma, a enorme força que aquele potencial possui, além de se procurar chamar a atenção para a forma decidida e directa, como ela é utilizada pelo capital. A verdade é que, como potencialidade que é, esta força pode ser expressa num ou noutro sentido, tudo dependendo das condições sociais da sua expressão. Isto demonstra que o desporto não é nem bom, nem mau, em si e por si.
Mas esta «neutralidade» perante os valores, não limita a sua capacidade de se constituir como força humanizadora. Trata-se de uma actividade que está à disposição da sociedade, para ser utilizada num ou noutro sentido consoante se entender. Será o Ser Humano que terá de construir o seu significado humanizador.
O outro aspecto da questão da democratização do desporto diz respeito ao próprio significado do desenvolvimento no seu sentido global. O Plano, para garantir que a sua preocupação central é a emancipação do ser humano, não pode esquecer nenhum dos componentes do seu processo de «hominização». É por isso que se estabelece uma nítida diferença entre crescimento, entendido como o aumento quantitativo, e o desenvolvimento, como processo de transformação qualitativa de que aquele também faz parte. A experiência de décadas e a análise política das intenções, demonstra que nunca se pode falar de desenvolvimento, marginalizando ou subvalorizando o processo cultural. E, nele, o desporto não pode ser esquecido e/ou marginalizado pois desempenha funções específicas insubstituíveis.


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