Uma televisão de guerra(s)
Foi há duas ou três semanas, não sei bem, perdoar-se-me-á a imprecisão. Era uma tarde de domingo, passei-a inteirinha a ver televisão saltando sobretudo de canal aberto para canal aberto, pois bem se sabe que são esses canais que mais são sintonizados pela generalidade dos cidadãos portugueses. Com excepção da «2:», que consagra as tardes dos domingos à cobertura de acontecimentos dos chamados desportos pobres, os outros canais transmitiam filmes. Mais que um por canal. Consecutivamente. Fiquei a vê-los, naturalmente, não só por algum sentido de dever de ofício como porque não podia sair de onde estava. E foi terrível: todos ou quase todos eles eram verdadeiramente assustadores. Pelas cenas de intensa violência de modelo clássico, digamos assim, que os povoavam, mas também por outras formas de violência já situadas no território do terror, pelo clima de asfixiante tensão obtida pela convergência da iluminação nocturna e de uma banda sonora a condizer, pela inserção do olhar do espectador em mundos povoados por criaturas monstruosas integradas em monstruosos entrechos. Era, decerto por coincidência mas talvez não por coincidência inteiramente casual, simultaneamente em mais de um canal, uma televisão de susto. Por mim, salvei-me do risco de uma contaminação pelo vírus de algum medo de que não nos damos inteira conta mas que pode alojar-se em nós, clandestinamente, como uma espécie de bactéria que silenciosamente nos entra no sangue. Mas entenda-se: por razões várias, antigas e recentes, criei o calo bastante para resistir a tais perigos. Mas lembrei-me de que talvez nem todos os garotos e adolescentes estivessem na praia ou de passeio a outros lugares. E de muitos adultos que estariam em casa naquelas horas de maior calor. De qualquer modo, no caso de uns e de outros, reflecti que «criar calo» perante a inoculação do susto ou o espectáculo da violência com sangue a espirrar e membros a desprenderem-se dos corpos não pode confundir-se com a habituação, com a interiorização do sentimento de que tudo isso é normal. Por mim, acho que criei calo mas não me rendi a essa habituação inaceitável e altamente perigosa. Há-de haver muitos milhares como eu. A questão é que somos milhões.
A confissão de Valadão
Desde que a televisão existe que se levantam vozes contra a presença de diversas formas de violência na TV pela nocividade social que dela decorre, pois a TV é inevitavelmente uma indutora de modelos de comportamento (como a publicidade na TV reconhece e confirma). Mas não se trata apenas do modelo directo: trata-se também da criação de ambientes, de «naturalidades» artificiais em que formas por vezes sofisticadas de violência são dominantes e implicitamente propostas. Há muitos anos, estava a guerra colonial em África e Ramiro Valadão na presidência da RTP, houve um movimento de opinião que apelou para o fim de filmes violentos na televisão portuguesa. Mas Valadão recusou o apelo com um argumento significativo: a erradicação da violência na TV podia enfraquecer o ânimo castrense dos jovens portugueses que estariam em vésperas de serem chamados para «defenderem o Ultramar». Era o reconhecimento expresso e claro de que a violência na TV é um factor de preparação para a guerra. Pois bem: agora que as formas de violência na TV abandonaram a exclusividade dos modelos primários então usados e se alargaram para outras formas e registos; agora que todos os canais abertos privilegiam nos muitos filmes que transmitem os que têm abundantes e diversificados recheios de violências de variado tipo; julgo entender que esta TV que me encheu os olhos numa tarde de domingo mas que de facto se estende a outros horários e a outros dias de semana é, muito verdadeiramente, uma televisão de guerra. Ao abrigo do pretexto de que se trata de ficção, tende a habituar o telespectador desarmado de prevenções à ideia de que o susto, o medo, o horror, a profusão de criaturas mais ou menos monstruosas, as grandes superlutas com hiperarmas, tudo isso e mais alguma coisa, fazem parte de um mundo «natural» e inevitável que pode estar aí a chegar se é que não chegou já, parcialmente, a alguns lugares. Que o percurso do planeta e as gentes que o habitam é mesmo esse e não qualquer outro, pelo que há que aceitá-lo. E não se objecte que outros países transmitem os mesmos filmes. Porque é natural: o fornecedor é o mesmo.
A confissão de Valadão
Desde que a televisão existe que se levantam vozes contra a presença de diversas formas de violência na TV pela nocividade social que dela decorre, pois a TV é inevitavelmente uma indutora de modelos de comportamento (como a publicidade na TV reconhece e confirma). Mas não se trata apenas do modelo directo: trata-se também da criação de ambientes, de «naturalidades» artificiais em que formas por vezes sofisticadas de violência são dominantes e implicitamente propostas. Há muitos anos, estava a guerra colonial em África e Ramiro Valadão na presidência da RTP, houve um movimento de opinião que apelou para o fim de filmes violentos na televisão portuguesa. Mas Valadão recusou o apelo com um argumento significativo: a erradicação da violência na TV podia enfraquecer o ânimo castrense dos jovens portugueses que estariam em vésperas de serem chamados para «defenderem o Ultramar». Era o reconhecimento expresso e claro de que a violência na TV é um factor de preparação para a guerra. Pois bem: agora que as formas de violência na TV abandonaram a exclusividade dos modelos primários então usados e se alargaram para outras formas e registos; agora que todos os canais abertos privilegiam nos muitos filmes que transmitem os que têm abundantes e diversificados recheios de violências de variado tipo; julgo entender que esta TV que me encheu os olhos numa tarde de domingo mas que de facto se estende a outros horários e a outros dias de semana é, muito verdadeiramente, uma televisão de guerra. Ao abrigo do pretexto de que se trata de ficção, tende a habituar o telespectador desarmado de prevenções à ideia de que o susto, o medo, o horror, a profusão de criaturas mais ou menos monstruosas, as grandes superlutas com hiperarmas, tudo isso e mais alguma coisa, fazem parte de um mundo «natural» e inevitável que pode estar aí a chegar se é que não chegou já, parcialmente, a alguns lugares. Que o percurso do planeta e as gentes que o habitam é mesmo esse e não qualquer outro, pelo que há que aceitá-lo. E não se objecte que outros países transmitem os mesmos filmes. Porque é natural: o fornecedor é o mesmo.