FALTA DE HUMOR

Jorge Cadima

O al­truísmo ame­ri­cano tra­duziu-se já em cerca de 655 mil mortos

É difícil nos tempos que correm encontrar motivos para rir na política internacional. Há demasiada morte, destruição e sofrimento. Mas os senhores de Washington são tão trogloditas que é impossível esconder um sorriso ocasional.

D ois jornalistas do New York Times, propalando a versão americana da execução de Saddam – parecida com o relatório oficial que Pôncio Pilatos deve ter enviado para Roma – conseguiram escrever: «quando o [“Primeiro-Ministro” iraquiano] Sr. Ma­liki de­cidiu avançar com a exe­cução, os Ame­ri­canos dis­seram que não iriam con­ti­nuar a tentar im­pedi-la, tendo che­gado à con­clusão que po­diam acon­se­lhar os Ira­qui­anos contra a exe­cução, mas não im­pedi-la se os Ira­qui­anos in­sis­tissem, por res­peito para com a so­be­rania ira­quiana» (NYT, 3.1.07). A comovedora sensibilidade americana para com a soberania iraquiana – patente na destruição desse país ao longo dos últimos 15 anos – tinha sido evidenciada ainda na semana anterior. Segundo a cadeia televisiva CBS (dia de Natal, 2006): «Tropas ame­ri­canas no Iraque pren­deram pelo menos dois ira­ni­anos […] Dois dos de­tidos es­tavam de vi­sita a con­vite do Pre­si­dente ira­quiano, Jalal Ta­la­bani».

E m defesa do seu «novo Médio Oriente», «democrático» e com «valores ocidentais», Condoleeza Rice viajou até à maior democracia ocidental da região – a Arábia Saudita – e por entre palavras de apreço mútuo, declarou ao seu homólogo saudita: «Temos um ob­jec­tivo comum, que é um Iraque unido [..] sem in­ge­rên­cias ex­ternas» (al Ja­zeera, 16.1.07). Tinha acabado de ser decidido em Washington enviar mais 20 mil soldados para o Iraque ocupado por Washington, a juntar aos 150 mil que lá estão desde a guerra levada a cabo por Washington, para servir os interesses de Washington. O altruísmo americano traduziu-se já em cerca de 655 mil mortos – mais ou menos 2,5% da população iraquiana (The Lancet, Outubro 2006).

Q uem parece não partilhar do fino sentido de humor americano são os chineses. Não terão achado graça ao facto de os EUA terem bombardeado a sua Embaixada em Belgrado, durante a guerra da NATO de 1999. Nem ao facto de em 2001 um dos aviões espiões dos EUA que patrulham constantemente a costa chinesa ter embatido num caça chinês, provocando a morte do seu piloto. Nem ao facto de o documento de estratégia nuclear dos EUA de 2002 («Nu­clear Pos­ture Re­view») citar explicitamente a China como um país em relação ao qual é concebível uma crise que leve os EUA a usar armas nucleares. Talvez por não ter achado graça a nada disto, a China efectuou a semana passada um ensaio, em que destruiu com um míssil lançado a partir de terra um velho satélite (seu) em órbita a cerca de 800 km de altitude. Foi então que os EUA também perderam o seu sentido de humor, tendo feito um protesto diplomático aos chineses. «O teste foi par­ti­cu­lar­mente pre­o­cu­pante porque expôs a vul­ne­ra­bi­li­dade da de­pen­dência ame­ri­cana em re­lação a sa­té­lites de ór­bitas baixas, que são usados para co­mu­ni­ca­ções mi­li­tares, bombas in­te­li­gentes e es­pi­o­nagem. Em te­oria, o exer­cício da se­mana pas­sada pode dar a Pe­quim a ca­pa­ci­dade de deitar abaixo esses sa­té­lites – facto que es­teve na origem dos pro­testos de Washington» (Guar­dian, 19.1.07). Quem lhes deu o direito de andar a destruir os seus próprios satélites… como fizeram os EUA em meados dos anos 80 (CNN, 19.1.07)? Até porque «em fi­nais de Agosto [2006] o Pre­si­dente Bush au­to­rizou uma nova po­lí­tica es­pa­cial na­ci­onal que ig­nora apelos a uma proi­bição global deste tipo de testes. Essa po­lí­tica afirma que os Es­tados Unidos irão pre­servar os seus di­reitos, ca­pa­ci­dades e li­ber­dade de acção no es­paço e dis­su­adir ou de­sen­co­rajar ou­tros, quer de im­pedir estes di­reitos, quer de de­sen­volver a ca­pa­ci­dade de o fazer. […] Há vá­rios anos que Russos e Chi­neses têm pro­cu­rado al­cançar um tra­tado que proíba as armas es­pa­ciais. O con­ceito de exibir po­derio para forçar al­guém à mesa das ne­go­ci­a­ções é uma clás­sica téc­nica da guerra fria» (New York Times, 19.1.07). Há gente sem sentido de humor…


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