- Nº 1755 (2007/07/19)

Os endividados

Argumentos

Organismos internacionais denunciam, governo queixa-se, órgãos de comunicação social avisam: os portugueses estão sobreendividados. Esta situação, feia e inconveniente, há-de ter a ver com aquela outra informação que os media regularmente nos prestam, a saber que os portugueses vivem acima das suas possibilidades. É claro que, como bem se sabe, quando neste contexto se fala de «os portugueses» não se está a pensar em todos os portugueses mas sim na vasta maioria que nesta como noutras matérias bem podem ser designáveis por «os suspeitos do costume». A contrapartida para esta situação é a existência de uns tantos portugueses que por mais que gastem não o fazem nunca acima das suas possibilidades, e até acontece que um ou outro entra na exigente lista dos homens mais ricos do mundo, o que obviamente é uma subida honra para a pátria. Mas não foram esses raros, mas sim os muitos milhares se não milhões que gastam mais do que o que têm e por isso recorrem ao endividamento, que motivaram Teresa Botelheiro, jornalista da RTP, a fazer para a rubrica «Em Reportagem» um trabalho acerca dessa situação, das suas causas e de algumas das suas consequências. Não foi nada de longo e exaustivo, o formato da rubrica não permite voos muito largos, mas o que ali foi referido e mostrado, embora não em tom de grande alarme, bem justificaria que a sua transmissão tivesse sido feita em canal mais frequentado que a RTP 2 e em horário mais propício a uma larga audiência que a proximidade das 23 horas. «Em Reportagem» surge de facto como um complemento ao Jornal 2 e, assim, como uma espécie de informação apendicular, situação que no caso do trabalho de Teresa Botelheiro, e não só, não é inteiramente coadunável com o aviso e a denúncia de interesse verdadeiramente nacional que consubstancia.

Em sobredesespero

Dois dados de significado central foram avançados na reportagem: o maior factor de endividamento das famílias é o que resulta da aquisição de casa própria e o que com mais frequência desencadeia situações dramáticas de desequilíbrio financeiro é o desemprego. O primeiro, como é sabido, resulta directamente do facto de os custos de arrendamento serem muito próximos, quando não superiores, aos das prestações de apartamento adquirido, e isto em consequência da especulação imobiliária que tem permitido grandes fortunas construídas sobre grandes desgraças. O segundo tem tudo a ver com a política socialmente criminosa que protege o trabalho sem segurança, dito precário, a «flexibilização» despojada de escrúpulos e recheada de arbítrios. Como a reportagem mostrou, embora sem enfatizar dramatismos e porventura até em tom menor, estes dois factores estão a colocar milhares de cidadãos à beira do desespero e da tragédia, nada que preocupe os sucessivos governos. Para lá disto, que não é pouco, há os permanentes estímulos ao consumo de bens de diversa ordem e diferentes graus de necessidade, complementados com uma crescente oferta de créditos de fácil acesso. Os telespectadores conhecem bem esta face particularmente sinistra da sociedade dita de consumo, mas é mal conhecido, se não de todo ignorado, o regime de juros a que se expõe o utilizador de tais facilidades, sobretudo em eventual situação de incumprimento. Como Teresa Botelheiro referiu, os utilizadores de tais créditos não lêem o que nos contratos está escrito «em letras pequeninas», e por aí muito se perdem. Para mais, embora aos próprios isso pouco importe, esses cidadãos contribuem destacadamente para o labéu que impende sobre a generalidade dos portugueses: estão sobreendividados. Em verdade, porém, o que é terrível é que estão sobredesesperados. Cada vez mais. Alguns porque se atreveram a consumir bens de preço mais ou menos alto: casas, carro, talvez férias em lugares com preços caros (nem todos têm amigos que disponibilizam para o efeito e a título gracioso ilhas no Atlântico Sul, não sei se se lembram de um caso interessantíssimo). Outros, muitos, ou talvez todos, porque o governo decidiu que seja assim.

Correia da Fonseca