A denúncia do colonialismo

Domingos Lobo
A guerra nas colónias, segundo a define Rui de Azevedo Teixeira, no livro A Guerra Co­lo­nial e o Ro­mance Por­tu­guês, fi­cava a dever-se à di­ta­dura, es­tando esta as­sente na tri­peça na­ci­o­na­lismo-co­lo­ni­a­lismo-es­ta­tismo e em es­tru­turas mais in­ti­mi­dantes do que ac­tivas, ge­rando um grau de opressão que au­menta do centro para a pe­ri­feria, da me­tró­pole para as co­ló­nias. Nestas, à na­tu­reza fas­cista e à re­pressão bu­ro­crá­tica junta-se a prá­tica co­lo­nial, a vi­o­lência di­recta e sem res­tri­ções.
É este tipo de repressão, mesmo quando não atinge fisicamente a vítima, mas que perfura o âmago da dignidade, que se respira como atmosfera opressora, que o poeta angolano Alexandre Dáskalos (poeta que faleceu em 1961, no Caramulo, com 37 anos de idade), denuncia nos limites da mágoa e da revolta: Mi­nhas mãos são de tra­balho/​Em coisas que eu não sei/​E não tenho nem apalpo/​Tra­balho que fica feito/​para o branco me dizer/”​Obra de preto sem jeito”. Ou, de forma mais amarga e contundente, trespassado de ironia com lágrimas, no famoso poema de António Jacinto, Cas­tigo Para o Com­bóio Ma­landro: (...) aquele vagão de grades tem bois/​múu múu múu (...) tem outro/​igual como este dos bois/​leva gente (...) muita gente como eu/​cheia de po­eira/​gente triste como os bois/​gente que vai no con­trato. E foi, através deste poema de António Jacinto, que os alvores primaveris do marcelismo (em hipócrita e orquestrada tentativa de abertura intercultural para estrangeiro ver) deixaram que Rui Mingas cantasse, (embora numa versão mais branda) que pela segunda vez tomei contacto com a expressão ir no con­trato.
Um outro poema, Grito Negro, do poeta moçambicano José Craveirinha, estrutura-se como poema de combate, no esteio de um lirismo rarefeito herdado de Daniel Filipe e de poetas do neo-realismo português como Luís Veiga Leitão ou Carlos de Oliveira, (de resto, os poetas revelados pela Casa dos Es­tu­dantes do Im­pério beneficiaram, quase todos, das influências determinantes do neo-realismo, justificando-se por essa via a tese complementar, embora com pressupostos contrários aos enunciados por Rui de A. Teixeira, de que igualmente as teorias revolucionárias seguiram trâmites idênticos aos da repressão, ou seja, da capital do império para as colónias) para, dessa forma denunciar, desafiador, as atrocidades coloniais: Eu sou carvão!/​E tu ar­rancas-me bru­tal­mente do chão/​e fazes-me tua mina, pa­trão./​Eu sou carvão! E tu acendes-me, pa­trão, para te servir eter­na­mente como força mo­triz/​mas eter­na­mente não, pa­trão./​Eu sou carvão/​e tenho que arder sim: queimar tudo com a força da minha com­bustão/​Eu sou carvão; tenho que arder na ex­plo­ração/​arder até às cinzas da mal­dição/​arder vivo como al­ca­trão, meu irmão,/​até não ser mais a tua mina, pa­trão./​Eu sou carvão/​tenho que arder/​queimar tudo com a força da minha com­bustão. Sim!/​Eu sou o teu carvão, pa­trão. Neste poema de Craveirinha, pela primeira vez, a poesia africana abandona as cambiantes de exotismo camuflativo, para assumir claramente a função de arma de combate (a palavra como arma no sentido nerudiano) contra a opressão colonial, como grito de guerra libertário. José Craveirinha é uma das vozes de Mo­çam­bique que mais se fi­zeram ouvir nesse pro­fundo coro de pro­testo, escreve Serafim Ferreira no texto A Po­esia Como Arma Po­lí­tica.
A poeta moçambicana Noémia de Sousa aponta, na sua escrita, de forma impressiva os sinais mais cruéis da colonização portuguesa, embora o faça através de uma estrutura poética original e pessoalíssima, de um lirismo arrebatado e sofrido, na forma singular com que nos fala das gentes e paisagens de África, para nos dar, em singelo telegráfico, impressivos sinais de revolta: Quem terá es­tran­gu­lado a voz can­sada/​de minha irmã do mato?/​De re­pente, seu con­vite à acção/​perdeu-se no fluir cons­tante dos dias e das noites. (...)/​Iô ma­manê, quem terá fu­zi­lado a voz he­róica/​de minha irmã do mato?/​Que des­co­nhe­cido e cruel ca­valo-ma­rinho/​a terá fus­ti­gado até matá-la?se grito de revolta prossegue no poema "Deixa Passar o Meu o Povo", no qual a autora invoca os longínquos apelos vindos da América Negra, também ela em luta pela dignidade e libertação e aos quais junta a sua voz: “Let my pe­ople go". Es­crevo…/​Na minha mesa, vultos fa­mi­li­ares vêm de­bruçar./​Minha Mãe de mãos rudes e rosto can­sado/ e re­voltas, dores, hu­mi­lha­ções/​tac­tu­ando de negro o virgem papel branco./​E Paulo, que não co­nheço/​mas é do mesmo sangue e da mesma seiva amada de Mo­çam­bique/​e mi­sé­rias, ja­nelas gra­de­adas, adeuses de ma­gaícas,/​al­go­doais, e meu ines­que­cível com­pa­nheiro branco,/​e Zé - Meu irmão - e Saúl,/​pe­gando na minha mão e me obri­gando a es­crever/​com o fel que me vem da re­volta.
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Bibliografia: «A Guerra Colonial e o Romance Português», de Rui de Azevedo Teixeira (Editorial Notícias)
Documentos da Fundação Portugal-África - Univ. de Aveiro


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