A poesia como arma de combate

Domingos Lobo
Outra das vozes denunciadoras da violência colonial, e que de Lisboa ecoaria nas matas do Norte angolano, foi Agostinho Neto, poeta de rara capacidade discursiva, lúcido e sensível, autor de uma poesia alicerçada nas raízes mais fundas da terra angolana, desvendando angústias, silêncios, cantos sofridos da terra-mãe, com enorme despojamento estético, prodigiosa de ritmo discursivo; um canto linear para se tornar perceptível, um canto para as massas, para o despertar das consciências, transportando outras violências, outras latitudes onde o homem sofra os horrores da fome, da opressão, das injustiças: no Congo, na Geórgia, no Ama­zonas – uma escrita profundamente humana e solidária.
Como Neruda, Agostinho Neto sabe que a poesia é ainda e sempre uma arma a usar e a manejar antes de todos os combates, para que o combatente reserve para si essa bagagem, esse cadinho de alma nas atrocidades da luta: ou seja, que a revolta seja justa e ideologicamente consequente; as vontades só se mobilizam se apetrechadas, também, com os instrumentos da arte e da cultura. Toda a revolução é um acto cultural, sabemos isso desde a Co­muna de Paris, passando por Lenine, até ao Sartre. Porque, sobretudo, é necessário que o verbo se transmude em acto, que a poesia se transforme em acção criadora e fecunda, redentora, anunciadora do novo: Criar criar/​criar nos es­pí­rito criar no mús­culo criar no nervo/​criar no homem criar na massa/​criar/​criar com os olhos secos, mesmo sobre os temores mais fundos, o mais duro e irracional arbítrio, é preciso Criar criar/​sobre a pro­fa­nação da flo­resta/​sobre a for­ta­leza im­pu­dica do chi­cote/​criar sobre o per­fume dos troncos ser­rados, criar sem que a dor se espelhe, junto com a natureza e os homens, com os punhos acesos, com as lágrimas tolhidas, Criar/​criar com os olhos secos, para que os opressores não rejubilem, não se julguem eternamente vencedores e isentos de expiação.

Uma luta dos povos

É essa aspiração do direito inalienável a uma pátria livre e justa, a uma luta que o poeta sabia não ser apenas do povo Angolano mas mais larga, juntando nessa frente os povos de África ainda sujeitos à exploração e jugo coloniais, que determina o poema As­pi­ração, no qual Agostinho Neto regressa às origens do seu espaço, às suas memórias da terra mãe, para nos dar a pungência do inevitável, o desejo de libertação que é, ao mesmo tempo, aspiração soberana de nessa pátria poder inscrever as raízes culturais e identitárias do seu Povo: «Ainda/​o meu sonho de ba­tuque em noites de luar//(…) ​Ainda o meu es­pí­rito/​Ainda o quis­sange/​a ma­rimba/​a viola/​o sa­xo­fone/​ainda os meus ritmos de ri­tual or­gíaco//(…) ​Ainda o meu sonho/​o meu grito/​o meu abraço/​a sus­tentar o meu Querer// E nas san­zalas/​nas casas/​nos su­búr­bios das ci­dades/​para lá das "li­nhas"/​nos re­cantos es­curos das casas ricas/​onde os ne­gros mur­muram: ainda// o meu De­sejo/​trans­for­mado em força/​ins­pi­rando as cons­ci­ên­cias de­ses­pe­radas».
E em registo de revolta íntima, o poema «Sagrada Esperança», traça os contornos perenes de uma luta internacionalista que, no dizer de Oscar Lopes, «é a esperança que, hoje, faz realmente a história, a história de cada pátria que se quer livre (…): todas as mães ne­gras/ cujos fi­lhos par­tiram. (…) Eu já não es­pero/ sou aquele por quem se es­pera/ sou eu minha mãe/ a es­pe­rança somos nós.
De Agostinho Neto, enquanto poeta empenhado no estudo e incremento da nossa língua comum, escreveu Oscar Lopes: Agos­tinho Neto, que es­creveu ori­gi­nal­mente al­gumas po­e­sias em quim­bundo, é hoje um poeta apenas pu­bli­cado em por­tu­guês, para que ne­nhum com­pa­triota o sinta como es­pe­ci­al­mente li­gado a uma só das et­nias da sua pá­tria. A língua portuguesa funcionava, para Agostinho Neto e outros intelectuais revolucionários, como factor de coesão nacional. Ainda Oscar Lopes: Agos­tinho Neto, como Amílcar Ca­bral (…) par­ti­cipou na re­sis­tência por­tu­guesa ao fas­cismo antes da sua luta di­rec­ta­mente an­ti­co­lo­nial. (…) Ouvi-o a ele fazer dis­tin­ções ca­rac­te­rís­ticas de uma plena ma­tu­ri­dade po­lí­tica an­go­lana que a tantos de nós, por­tu­gueses, nos falta. Neto dis­tin­guia entre os laços cul­tu­rais luso-an­go­lanos de ob­jec­tiva raiz his­tó­rica – e a bar­bárie do co­lo­nial-fas­cismo por­tu­guês.
Amílcar Cabral, Agostinho Neto, Samora Machel, sabiam que a sua luta não se dirigia «ao Povo português», mas ao regime que a todos explorava e oprimia.

Bi­bli­o­grafia: Resistência Africana – antologia poética org. por Serafim Ferreira (Diabril-1975)
«Cifras do Tempo», de Oscar Lopes (ed. Caminho)


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