A DESAPARECIDA

Correia da Fonseca
Como decerto se sabe, «A Voz do Cidadão» é o programa do Provedor do telespectador da RTP. Ora, tendo acontecido que no passado fim-de-semana o programa abordou a efectiva eliminação da poesia das antenas da RTP, não surpreenderá muito que hoje aqui se fale disso mesmo, de poesia e do seu desaparecimento da programação do canal público de TV. Esse desaparecimento poderá ser, ou não, encarado como um «caso», mas de qualquer modo sem que a palavra implique alguma conotação com a área do policiesco e contextos mais ou menos marcados pelo mistério. De facto, não há nada de misterioso na inexistência de uma rubrica de poesia na RTP, estação «de serviço público» onde , por via de regra, é vedada a entrada à grande Música. O contrário, sim, é que seria intrigante. É bem sabido, pois disso são abundantes as provas dadas, que a RTP não engraça com essas coisas da cultura, decerto porque «os tempos são outros», como foi dito e sublinhado em «A Voz do Cidadão», e os tempos que são outros pressionam para que se abandone a convicção incómoda e tida por obsoleta que a cultura é um bem público a defender e partilhar. Natália disse um dia que «a poesia é para comer». Natália era poeta, íntima da linguagem metafórica, se ainda estivesse por cá e agora dissesse o mesmo é crível que a poesia fosse transferida para os cuidados da ASAE por despacho de um qualquer secretário de Estado. Até porque, como claramente se pressente, muitos dos secretários de Estado e mesmo dos ministros do actual elenco governativo devem a sua formação cultural à televisão. O mesmo me arriscarei dizer de alguns dos deponentes na emissão de «A Voz do Cidadão» que determinou hoje o tema destas colunas. Quando, por exemplo, se ouve e vê uma subdirectora de programas da RTP citar David Mourão-Ferreira como declamador, a par de João Villaret e Mário Viegas, fica-se naturalmente tocado por alguma inquietação. Que se agrava, de resto, quando a mesma senhora exprime o parecer de que a televisão deve «brincar com a poesia», provavelmente para se fazer perdoar no caso de incluir uns minutos de poesia por volta da meia-noite e, é claro, na «2». Felizmente, o programa ouviu mais gente. Por exemplo, Margarida Reis, investigadora, sublinhou que a poesia faz parte da nossa identidade e a televisão tem de divulgá-la e potenciá-la. E Maria Filomena Mónica preconizou um tratamento muito discreto da poesia, com «muito poucas imagens» e, consequentemente, toda a atenção e todo respeito centrados sobre as palavras. Parece que em matéria de poesia, quer na TV quer fora dela, Maria Filomena não está inclinada para «brincadeiras».

Proximidade

O método de tratar a poesia na TV em aparente tom de brincadeira foi introduzido por Mário Viegas que, com uma desenvoltura que conquistou os que gostam mais de brincadeiras que de poesia, tratou de privatizar a poesia em proveito próprio, tratando-a como texto para servir um actor e não como valor a ser servido. Passando, porém, a falar de coisas sérias, admitamos que pode parecer inadequado vir aqui falar de poesia quando estamos em tempo de festejar mais um aniversário do Partido de que este jornal é o orgão escrito. A questão é que, como de resto sabemos, entre a poesia e a luta não há distância mas sim frequente proximidade. Lembro Sidónio Muralha a rejeitar, talvez com algum excesso, «a poesia dos senhores que propagam o nevoeiro e confundem as gentes». E, mais ainda, um entre muitos dos poemas de Vasco Costa Marques, poeta esquecido de cuja morte soube não há muito tempo: «Pintaram o céu de preto /e vieram nos dizer /que o céu era mesmo preto /mas nós não quisemos crer./e uns sobre os ombros dos outros /fomos subindo subindo / até que ao alto chegou /um camarada qualquer /que não sei se tinha vindo /se do norte se do sul./E o camarada qualquer /cuspiu nas mãos, esfregou, /e do céu negro brotou /um claro rasgão azul.» É claro que não me atrevo a reivindicar que a televisão se aplique a divulgar a notícia de que existem poetas e poemas assim, muito fará ela talvez quando lembra Ary dos Santos, sabe-se lá quanto lhe custa. Mas que, pelo menos, não se comporte como se a poesia não existisse. Que não a esconda nem a disfarce de outra coisa.


Mais artigos de: Argumentos

Sentido íntimo de<br><i>nova evangelização</i>

Ao longo do seu papado, João Paulo II preocupou-se em atingir três objectivos centrais. Por um lado, o de promover o reforço das posições da hierarquia religiosa nas relações Igreja/Estado. Por outro lado, o de reforçar o movimento de aproximação e enlace da sociedade civil com as instituições canónicas, criando espaços...

Retórica e práticas do colonialismo

Aurélio Santos, referindo as práticas do colonialismo luso, assinala que foi assim até aos anos sessenta, ou seja, até ao início do conflito armado: qualquer negro, diz Aurélio Santos, a servir em casa de branco podia ser mandado ao chefe de posto – o administrador local – para que lhe fossem dados castigos corporais,...