Desporto e (é) política (3)

A. Mello de Carvalho
A análise crítica do desporto nunca constituiu um traço suficientemente marcante entre os nossos intelectuais. Filhos directos de uma cultura que, no mínimo, sempre considerou as coisas do corpo como secundárias, popularuchas e indignas da atenção dos srs. doutores, o desporto foi quase sempre minimizado e o corpo olhado com desconfiança. No máximo, ao longo de séculos, foi considerada coisa demoníaca, para a qual nem o seu próprio habitante devia sequer olhar. E muito menos tocar e sentir, porque originando os maiores males, chegando ao «pecado da carne» como o mal em si.
Contudo, durante o século XIX alguns dos nossos mais proeminentes intelectuais referiram-se ao assunto (à ginástica, ao desporto, ao corpo) como o Eça de Queirós por exemplo. Mas sempre de um modo fragmentário e pouco profundo: era coisa menor, indigna de ser tratada por quem tão intensamente se impregnava das coisas «espirituais».
Durante o século XX, a situação não melhorou. A cultura dominante manteve-se aferrada a um intelectualismo dualista, mais ou menos romântico, e mesmo os mais «materialistas» limitavam-se a olhar o desporto nascente e depois o futebol triunfante e intoxicador com desconfiança e repulsa. A tradição desportiva «arnoldiana» surgida nos grandes colégios privados de Inglaterra era olhada como uma excentricidade tipicamente anglo-saxónica, a forte organização desportiva universitária norte-americana como uma originalidade da nova nação e o pensamento coubertiniano, normalmente desconhecido, limitava-se a provocar um sorriso irónico - condescendente sobre a realidade gaulesa.
Entretanto, o nosso corpo, o corpo dos portugueses, os corpo físico dos descendentes dos velhos marinheiros que continuavam a esperar o aparecimento entrenevoeirento de um D. Sebastião, definhava e mantinha-se raquítico sob o jugo férreo da política salazarenta. O desporto, esse, era cada vez mais identificado com o «jogo da bola», que, para o intelectual intensamente jesuítico das nossas universidades, só servia para anestesiar as massas – coisa boa, porque as desviava dos caminhos perigosíssimos e celerados de se porem a pensar pela sua própria cabeça, coisa para a qual não estavam fadados, como o escreveu um antigo ministro da educação de Salazar, ao lançar por volta dos finais da década de 30, uma «nova reforma» da educação: os portugueses não têm pendor para a leitura, dizia então no preâmbulo da nova lei.
Estranhar-se-á que se ligue esta questão da leitura com o desporto, mas, infelizmente, para as nossas crianças, as duas coisas estão intimamente ligadas e fazem parte de uma mesma coisa: a educação integral e completa do ser humano. Já agora, diga-se que, quanto a este lado do quadro é precisamente esta realidade que faz com que o desporto mergulhe inteiramente na política.
Durante os primeiros 74 anos do século XX Portugal foi habitado por um povo que, «pelas suas características» não tinha aptidões, nem vontade, nem gosto, para as coisas do desporto. O número de praticantes era exíguo e nem mesmo a antiga e tão «querida» Mocidade Portuguesa de muitos dos nossos intelectuais de então conseguia contrariar esta situação. Por essa altura a percentagem de praticantes andaria abaixo dos 2% da população e, com as ressalvas felizes mas meramente ocasionais do 3.º lugar no Campeonato do Mundo de Futebol em 1966, do infeliz mas punjante Joaquim Agostinho no ciclismo e um inesperado 4.º lugar de um tal Oliveira nos 3000 metros obstáculos dos Jogos Olímpicos de Tóquio (!), a afirmação desportiva internacional era uma lástima (não esquecer que na vela, na esgrima e no hipismo se continuou, ainda que esporadicamente, a honrar a tradição dos descobridores de novos mundos e dos indomáveis cavaleiros que se cobriram de glória pelas sete partidas do mundo).
Mas, nada disto convenceu os nossos intelectuais, a relacionarem o desporto com a política. Nem mesmo a estrondosa 1.ª grande medalha ganha pelo «nosso» Carlos Lopes nos Jogos Olímpicos de Montereal em 1976 (que todos viemos a saber anos depois ter sido de prata porque o Lasse Viren estava dopado até ao âmago com o seu próprio sangue) e que se começou a perceber a falsidade do ingénuo fatalismo da nossa incapacidade atlética internacional. Mais de 30 anos passados, em que Portugal demonstrou como se poderia ter afirmado no contexto desportivo internacional se tivessem sido tomadas medidas políticas adequadas, descobrimos primeiro com estupefacção e depois com azedume e raiva pacífica que, afinal, o nosso atraso neste campo (tal como noutros) não tinha origem somente na acção desvalorizadora de Salazar, mas também num pensamento reaccionário, bafiento e pacóvio, que, afinal, constituíra o humus político do próprio salazarismo e se tem prolongado no tempo.
E que, agora, politicamente, neste início de século, é continuado pela visão neoliberal dos intelectuais defensores do «pensamento único».


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