Brrr... que frio!

Francisco Silva
No romance protagonizado por Santo António, «Humildade Gloriosa», Aquilino Ribeiro escreve, a páginas tantas(1), que São Francisco de Assis enviou aquele em missão ao Sul da França. O objectivo para a missão de Santo António era reforçar o combate dos que andavam a levantar «de novo a grimpa», «para dar combate às seitas daninhas, conquistar aquelas pobres almas para Cristo (…)». Santo António, disciplinado, claro, disse que ia para onde o mandassem, só que não sabia falar a língua. Ao que São Francisco retorquira que nem era preciso saber a língua, bastava o sinal da Cruz. Que sim, que era melhor aprender «duas ou três palavras de romance». Mas que não eram indispensáveis. E «nada de discutir com os hereges». E continuou São Francisco: «Nas praças afirma-se. Fazem mais efeito que uma sabatina duas ou três frases destas, bem marteladas, bem imperiosas, acompanhadas de um gesto decidido: Cristo disse… Cristo reina. Só há uma verdade, a revelada (…)».
Ora, por estes dias, fui, por razões profissionais, mais uma vez de longada até à zona de Nice, caracterizada por um clima que atrai muita gente do Centro e Norte da Europa, em particular do Reino Unido, de ingleses. O nome da própria avenida marginal de Nice, a bordejar as quentes águas mediterrânicas, refere-se a um local de passeio de ingleses - o «Promenade des Anglais». Lá para trás, é certo, lá para Nordeste, estão os Alpes Marítimos com os seus cimos cobertos de branco na estação fria. No interior, antes dos contrafortes dos Alpes Marítimos, para quem vem da costa, o clima não é tão quente, é muito bom para os turistas no Verão, mas a dar para o frio no Inverno. O certo é que ainda se estava em finais de Novembro, oficialmente no Outono. Aí chegado, começo a ver neve na estrada e o termómetro do automóvel alugado a mostrar temperaturas que oscilavam em torno do zero. Brrr… Que frio. É verdade que já era noite. Contudo, não seria caso para tanto. O senhor da recepção do hotel onde me alojei, já quase um velho conhecido, disse qualquer coisa do género: «Há 22 anos que isto não acontecia.» Foi informado pela imprensa ou pela televisão.
Eu já no Verão passado sofrera um frio de rachar na bela costa alentejana, e já nessa altura tinha ficado a pensar no «aquecimento global», que aquelas férias mais me pareceram um sintoma de «arrefecimento global» - parafraseando as campanhas do «aquecimento global». Por isso, deu-me para atirar ao senhor da recepção, depois de ele me ter chamado a atenção para o frio intenso, inclusive para a neve outonal ali mesmo caída em boa quantidade, ali mesmo, isto é, pouco mais ou menos na «Côte d’Azur», na Riviera Francesa, deu-me para lhe atirar, a rasar, com a blague do «arrefecimento global». Ele reagiu mal. Pela primeira vez contestou-me, mesmo tendo em atenção que eu era um cliente, como se eu tivesse blasfemado. E, acto contínuo, recomposto, atirou-me com algo do género Cristo reina, para o caso, que o «aquecimento global» inclui também mais frio dependendo dos sítios.
No dia seguinte foi a vez da colega alsaciana, grande, loira, bonita. Ao ver-me veio-me com a mesma história do frio excepcional e da neve novembrina, inquirindo-me como seria lá no Sul, também faria frio lá em «Lisbonne», etc.
(Agora já sabe que «Lisbonne» é Lisboa e que é em Portugal. Da primeira vez, esta alsaciana - não consegui, entretanto, decorar o seu nome, deve ser velhice minha - preparara a factura com Espanha sob Lisboa, e ficou em forma de cavaco quando lhe pedi para corrigir o erro desafiando-a para descobrir o nome do respectivo país. Na altura fez várias tentativas: as costumeiras Turquia, Grécia e Argélia, e mesmo Irlanda. Só com a ajuda de um cliente brasileiro, divertido, que estava na fila, é que conseguiu chegar a Portugal!).
Como, com o outro colega, à abordagem da alsaciana sobre o inusitado frio para tais paragens reagi com a blague do «arrefecimento global». E a nossa alsaciana, mais compostinha na sua reacção para com o cliente que o colega na véspera, sem demonstrar enervamento perante a minha blasfémia, lá cassettetou que o «aquecimento global» inclui também mais frio dependendo dos sítios.
Tal como a lição de técnica comunicacional acima, dada por São Francisco no século XIII ao «martelo dos hereges», como foi conhecido Santo António pela sua acção entre os albigenses, assim também técnicas semelhantes são empregues hoje com eficácia, incluindo na doutrinação de massas acerca do «aquecimento global» - eu a pensar.
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(1) Aquilino Ribeiro – «Humildade Gloriosa», pgs 160-161. Lisboa: Bertrand (1985).


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