É preciso defender a independência da Justiça

José Neto
A recente cerimónia de abertura do Ano Judicial foi bem o espelho do estado actual da justiça no nosso País. Para além do discurso oficial, rotineiro, das dificuldades, do diagnóstico há muito conhecido e da fala do ministro sobre uma realidade virtual onde tudo vai bem, tudo está a mudar para melhor (?) o que é mais preocupante é que, na sua essência, a maioria dos discursos deixou de fora os reais problemas da justiça, em primeiro lugar os problemas com que se defrontam aqueles a quem ela se destina.
Desde logo as desigualdades dos cidadãos face à justiça, dado que a grande maioria não tem, na prática, qualquer direito à informação jurídica e ao apoio judiciário, que, como se sabe, não abrange sequer um trabalhador que aufere o salário mínimo. Mas também uma justiça cada vez mais cara e inacessível, com custas e taxas de justiça elevadíssimas e tribunais mais distantes. Ou ainda o infindável arrastamento de processos, anos a fio, quer na justiça cível quer no direito laboral, com os prejuízos sérios que daí resultam.
Mas, sobretudo, fora dos discursos ficou (e bem se compreende porquê) o gravíssimo problema de fundo, que consiste na progressiva desresponsabilização do Estado também nesta área e que se traduz na redução do «serviço público» de Justiça.
É visível uma estratégia de afastar os cidadãos dos tribunais, retirando a maioria da conflitualidade e dos processos dos tribunais do Estado, passando a resolução dos litígios para formas privadas, que crescem dia-a-dia, como é o caso das arbitragens, da conciliação e da mediação privada, agora até na área criminal. Trata-se de um processo acelerado de desjudicialização dos conflitos que redunda, seguramente, em pior justiça e que torna os cidadãos mais indefesos do que já hoje estão.
Exemplo disto é que o Governo se prepara para fazer na área laboral. Já não basta o fecho de juízos de trabalho e do fim que se prepara, a prazo, dos próprios Tribunais de Trabalho. Agora, os acidentados de trabalho podem deixar de ser representados pelo Ministério Público, como acontece hoje, quer na tentativa de conciliação com as seguradoras, quer no patrocínio da acção em Tribunal. Ficarão sem a protecção do Ministério Público e tudo passará para a famigerada Mediação laboral, onde a desigualdade de armas é o que se conhece, na linha, aliás, da filosofia do Código do Trabalho.
Quais são os objectivos desta estratégia? Em primeiro lugar, instigar, do ponto de vista ideológico, a ideia da conciliação de classes e da possibilidade da composição de interesses antagónicos. Depois, abrir ao sector privado uma nova área de negócio, o das formas privadas de justiça. Já assim é no apoio judiciário, ou na acção executiva para cobrança de dívidas e agora também na mediação, com o surgimento de novas profissões clientelares, solicitadores de execução e mediadores. Por último, o objectivo mais importante que é prosseguido: a redução dos litígios em tribunal para ser mais fácil e eficaz decidir e controlar o que vai ou não ser acusado, o que vai a tribunal, o que é julgado e até, no limite, quem vai julgar.
Este cenário está bem mais perto de ser realidade do que se julga e é, de há muitos anos, orientação do grande capital, dos sectores mais poderosos e dos governos de serviço – PS, PSD e CDS. Os programas, os compromissos, os pactos e, sobretudo, as práticas legislativas e administrativas, estão aí para o demonstrar.

Justiça de classe

A pedra angular para que este objectivo seja atingido é a autonomia do Ministério Público, consagrada na Constituição da República para a tutela da acção penal e a defesa da legalidade democrática.
De facto, como mostra a experiência, os grandes interesses e os governos que sempre procuram controlar de perto as investigações dos casos mais importantes, na fase de inquérito, só o conseguem se controlarem o Ministério Público (os órgãos de polícia criminal já estão na dependência dos governos).
Outros meios são igualmente possíveis, embora menos plausíveis, como a eventual intrusão nos meios informáticos dos magistrados, que tanta controvérsia vem gerando e que exige cabal esclarecimento.
A liquidação da autonomia do M. P. significaria, de uma penada, liquidar a independência dos juízes, acabar com a separação de poderes e governamentalizar um importantíssimo poder e função do Estado, que a Constituição atribui a um órgão de soberania – que são os Tribunais.
E, sobretudo, a destruição de um pilar fundamental do regime democrático.
Com a alteração recente do Estatuto do Ministério Público novos passos foram dados naquela direcção, num processo de agonia lenta que conduz à sua governamentalização e funcionalização definitiva. Isto se, por força da luta jurídica e política que está em curso, não forem consideradas inconstitucionais algumas das medidas introduzidas no Estatuto, no seguimento da aprovação do novo Mapa judiciário.
É uma evidência que as pressões do poder político sobre o judicial são cada vez maiores e mais eficazes. E há sinais preocupantes de tentativa de condicionamento, e auto-condicionamento, de magistrados, sobretudo das camadas jovens – desde o crescente número de processos, julgamentos e até condenações pelo exercício de direitos legítimos, numa linha de criminalização da luta, até aos quase inexistentes resultados no combate à grande criminalidade, ao crime económico e à corrupção.
É a justiça de classe, como temos dito repetidamente. E que se combate, sobretudo, no quadro da luta política mais geral. Pelo que seria errado que elegessemos como alvo principal do nosso combate político nesta área os tribunais e os magistrados. Devem sê-lo, isso sim, o poder político e o poder económico.
Além do mais, também nesta área da justiça cresce o número daqueles que resistem e lutam contra este estado de coisas. Gente boa e séria, que espera e que conta com o nosso apoio e que sabe que pode confiar na acção política do PCP em defesa da independência do poder judicial e em defesa da democracia. Não baixaremos os braços, não os desiludiremos.