Entrevista com Ângelo Alves e Pedro Guerreiro

Lutamos por uma Europa dos povos

Reunidos no Chipre, no passado dia 13 de Abril, 13 partidos comunistas e progressistas juntaram-se num Apelo Comum por uma outra Europa – contra a União Europeia do «directório», do neoliberalismo e do militarismo. Ângelo Alves, membro da Comissão Política e da Secção Internacional do PCP, e Pedro Guerreiro, membro do Comité Central e deputado no Parlamento Europeu, integraram a delegação do PCP. Em entrevista ao Avante!, explicam os objectivos e a importância deste documento que projecta a continuação e aprofundamento da cooperação entre partidos no quadro do Grupo Confederal da Esquerda Unitária Europeia/Esquerda Verde Nórdica no Parlamento Europeu (GUE/NGL).

«O Apelo Comum identifica o capitalismo como a causa principal da crise em que vivemos»

Avante! – Quais são os objectivos do Apelo Comum?
Ângelo Alves (AA) – No essencial é um compromisso dos partidos signatários que exprime a sua visão comum sobre a denominada «construção europeia» e as grandes orientações por que vão lutar na próxima legislatura no Parlamento Europeu.

É uma iniciativa que se inscreve no âmbito do Grupo GUE/NGL?

AA – Não. Trata-se de um documento de partidos. O Grupo GUE/NGL é uma expressão institucional no seio do Parlamento Europeu da cooperação entre partidos. O Apelo comum é uma expressão política de uma cooperação e de uma vontade entre partidos de continuar a dar-lhe expressão em vários planos, nomeadamente no plano do Parlamento Europeu.

Quando surgiu a ideia e qual foi o papel do PCP no lançamento deste Apelo?

AA – O PCP deu uma contribuição decisiva para que o Apelo se concretizasse. A ideia nasceu ainda em 2008, numa iniciativa organizada pelos camaradas do Partido Comunista de Espanha, na qual participaram vários partidos da Europa. Foi aí que o PCP, já com o acordo dos camaradas espanhóis, propôs duas linhas de trabalho. A primeira, a aprovação por partidos de esquerda de um documento que pudesse plasmar uma vontade comum na intervenção por uma outra Europa. A segunda, a renovação do objectivo de dar continuidade ao Grupo parlamentar após as eleições para o Parlamento Europeu, reafirmando as suas características essenciais, nomeadamente o seu carácter confederal e o respeito pelas diferenças e especificidades nacionais.

É nessa sequência que se realiza a reunião de 14 de Fevereiro em Lisboa?

AA – Sim. Após um período de contactos bilaterais, o PCP tomou a iniciativa de convocar uma reunião de partidos de esquerda dos países da União Europeia, em Lisboa, para avaliar a possibilidade de concretizar o Apelo Comum e debater a nossa cooperação no plano europeu. Nesse sentido apresentámos uma proposta de texto como uma contribuição para um trabalho de redacção que desejávamos que fosse colectivo.
A reunião de Lisboa, que juntou 12 partidos e onde estiveram representadas importantes forças de esquerda da Europa, decidiu finalizar o processo do Apelo numa reunião em Chipre na primeira quinzena de Abril, organizada pelo AKEL. Foi então constituído um grupo de trabalho com representantes do PCP, do PCE e do AKEL, que fez circular pelos restantes partidos o projecto de texto. Assim, chegámos a Chipre já com uma base consensual. Depois de algumas alterações finais, o Apelo foi aprovado sem dificuldade por 13 partidos, que reafirmaram a vontade de continuar a cooperar no âmbito do GUE/NGL.

É primeira vez que se lança um documento deste tipo ou há experiências anteriores?

Pedro Guerreiro (PG) – Não é a primeira vez. Foram lançados apelos comuns em anteriores eleições para o Parlamento Europeu. O presente Apelo tem como objectivo central demonstrar que há forças nos diferentes países que lutam e resistem contra esta União Europeia, e que, apesar das suas diferenças nacionais e até de perspectiva quanto à outra Europa por que lutamos, existem condições para estabelecer um conjunto de orientações gerais para a intervenção política nas eleições para o Parlamento Europeu. Para além disso, o Apelo vem na continuidade das eleições de 2004 e de várias iniciativas tomadas pelo PCP nos últimos cinco anos, com as quais se procurou contribuir para reforçar as relações e a cooperação entre estas diferentes forças de esquerda. É igualmente seu objectivo, como já foi referido, a consolidação da experiência de cooperação no quadro do Grupo GUE/NGL no Parlamento Europeu, mantendo as suas características, para as quais o PCP muito contribuiu no momento da sua fundação em 1994: o seu carácter confederal, o respeito pelas diferenças e a tomada de posições com base no consenso.
Mesmo que nem todos os signatários integrem actualmente o Grupo, todos se comprometem a salvaguardá-lo e a reforçá-lo na sequência das próximas eleições para o Parlamento Europeu.

No entanto, também há partidos que fazem parte do grupo e não subscreveram o Apelo, como é o caso do Partido Comunista da Grécia.

AA – Já em apelos anteriores o PCG não foi signatário, apesar de ter posições que em variados aspectos convergem com as plasmadas neste e em anteriores apelos. No entanto, como é sabido, os camaradas gregos defendem a saída da Grécia da União Europeia e o Apelo não explicita essa posição, o que nunca impediu a sua participação e cooperação no seio do grupo GUE/NGL, do qual, tal como o PCP, é um dos membros fundadores.

Portanto, a adesão ao apelo não é uma condição para integrar o GUE/NGL que se constituirá após as eleições?

AA – Este Apelo, tal como o de 2004 e outros anteriores, não é um documento fundacional do grupo ou um seu programa político. É sim um documento de partidos que identifica ideias comuns sobre a outra Europa que queremos e sobretudo contra esta Europa que temos. Neste sentido, é também uma demonstração de que há espaço para a cooperação entre partidos de esquerda, apesar da diversidade, dos caminhos muito diferentes seguidos nos últimos anos, apesar dos problemas que existem e que não escamoteamos nessa cooperação, como os que decorrem da criação do Partido da Esquerda Europeia, o qual, como é sabido, o PCP não integra.

Qual é a avaliação do PCP do papel do Partido da Esquerda Europeia?

AA – Na nossa opinião a evolução dessa estrutura confirma as nossas anteriores análises de que o Partido da Esquerda Europeia, mais do que um factor de união, continua a ser sobretudo um factor de divisão das forças de esquerda. Há no seu seio contradições evidentes, como o demonstra a recente saída do Partido Comunista dos Trabalhadores da Hungria, um dos seus membros fundadores.

O Apelo é fruto do relacionamento bilateral?

AA – Este Apelo é um processo de cooperação multilateral que assenta, de facto, em grande parte nas relações bilaterais que continuam a existir entre os partidos independentemente das diferenças. Refira-se que continua aberto à subscrição de todas as forças políticas de esquerda que estejam de acordo com o seu conteúdo. Aliás, neste momento já aderiram os partidos da Áustria, Hungria e o PC da Catalunha.

Que aspectos mais se destacam na posição comum destes partidos de esquerda?

PG – No momento em que se aprofunda a crise do capitalismo é de sublinhar que este conjunto de partidos coloca a União Europeia como protagonista desta crise e as suas políticas como causa do agravamento das condições de vida dos trabalhadores dos diferentes países. Define ainda um conjunto de linhas de ruptura com esta «Europa» e de combate às actuais políticas da União Europeia, apontando quatro eixos fundamentais ligados à defesa dos direitos dos trabalhadores e à defesa dos serviços públicos, dos sectores empresariais do Estado, reconhecendo aos estados a possibilidade de intervir directamente nos sectores económicos estratégicos; a defesa da produção nacional, o controlo democrático da política monetária, o combate à especulação financeira e o fim dos paraísos fiscais; a defesa e recuperação dos direitos sociais conquistados a seguir à II Guerra Mundial, dos direitos dos trabalhadores imigrantes, dos direitos das mulheres, da juventude, dos reformados, das pessoas portadoras de deficiência. Por último, destaca-se a rejeição da militarização da União Europeia, a exigência do fim dos blocos político-militares e do desarmamento.

AA – O Apelo e algumas das suas afirmações que julgamos importantíssimas são um sinal claro de que estes partidos, ao intervirem no plano da sua cooperação multilateral, nas suas lutas nacionais ou no plano institucional no grupo GUE/NGL, identificam o capitalismo como a causa principal da crise em que vivemos e identificam os dogmas da chamada «construção europeia» com o capitalismo. Neste sentido, é feita a afirmação de que o capitalismo não é humanizável, reformável ou regulável. Pensamos que esta afirmação tem um profundo significado político e ideológico.

Por vezes a ideia de neoliberalismo é intencionalmente desligada da ideia de capitalismo, ou seja, pretende-se que o problema está num alegado excesso de liberalismo e não na própria natureza em si do capitalismo.

AA – O Apelo faz precisamente essa denúncia, acusando as «forças conservadoras, liberais, sociais-democratas e verdes de direita» de tentar «dissimular as suas responsabilidades pelas políticas neoliberais da União Europeia, ensaiando um falso distanciamento do neoliberalismo, mas mantendo as suas orientações políticas em torno da denominada "refundação do capitalismo"».

Todavia, nessa perspectiva, não se formula em concreto a «Outra Europa» que pretende. Uma vez que não é o capitalismo, é o quê?

AA – Sobre isso é importante percebermos que o PCP já apresentou a sua declaração programática às eleições europeias, onde estão contidas as nossas posições sobre os efeitos da integração em Portugal e as propostas que preconizamos para um outro rumo para a Europa, que implica uma ruptura com a União Europeia. É com estas posições e por estas propostas que nos bateremos no Parlamento Europeu, mas, nessa luta, sabemos desde já que contamos com os partidos signatários do Apelo num importantíssimo conjunto de matérias.

Mas há questões às quais damos a máxima importância na nossa declaração programática e que surgem com um peso menor no Apelo Comum. Refiro-me por exemplo ao conceito de soberania nacional.

AA – Como é óbvio, nem todas as nossas posições estão reflectidas no Apelo Comum. No entanto, o respeito pela soberania nacional e pelo direito de cada país ao seu desenvolvimento económico e social está implicitamente contido no Apelo. A rejeição do domínio das grandes potências é aqui o ponto-chave. Naturalmente que há diferenças quanto à avaliação de como o chamado «projecto europeu» poderá evoluir, mas o mais relevante é a unanimidade na rejeição do liberalismo, do «directório» e do militarismo, que são os principais traços da dita «construção europeia». Esta grande convergência de posições é muito clara neste Apelo Comum.

Solidariedade com Chipre

A escolha de Chipre para a realização da reunião foi também uma forma de manifestar apoio à causa da reunificação da ilha e ao fim da ocupação que dura desde 1974?

AA – A proposta feita pelo PCP de o Apelo ser concluído em Chipre teve a intenção de associar o documento a uma grande demonstração de solidariedade dos partidos de esquerda da Europa com a causa cipriota. A este propósito foi aprovada uma moção que condena a ocupação da ilha pela Turquia. Por feliz coincidência, a reunião pôde realizar-se no mesmo fim-de-semana em que tem lugar a homenagem anual a dois comunistas cipriotas assassinados que simbolizam a luta contra a divisão imposta das comunidades grego-cipriota e turco-cipriota. Tradicionalmente, essa homenagem começa com uma grande manifestação até ao local do comício, seguindo depois até aos seus túmulos.

Nesse comício, Pedro Guerreiro foi o único convidado estrangeiro a intervir. Esse convite é um reflexo do bom relacionamento entre os dois partidos?

PG – O PCP tem na verdade relações muito próximas com o AKEL e esse facto é inseparável das posições de princípio que os comunistas portugueses têm defendido, tanto em Portugal como no Parlamento Europeu, relativamente ao fim da ocupação pela Turquia de um terço do território de Chipre, exigindo o pleno respeito das resoluções da ONU, do direito internacional e denunciando e rejeitando todas as manobras que visaram perpetuar esta ilegalidade, na sequência do referendo realizado nas duas comunidades. Sem dúvida que esta nossa posição é valorizada pelos camaradas do AKEL, partido que representa efectivamente a ideia de unidade de todo o povo cipriota, que nunca aceitou a divisão das duas comunidades e define como principal objectivo a reunificação do país. Foi com o sentido de saudar toda a resistência e luta do AKEL, que interviemos no comício de homenagem aos dois patriotas e comunistas cipriotas, em nome das delegações presentes.

Que impressões trouxeram do Chipre?

AA – Tivemos a oportunidade de confirmar a profunda ligação do AKEL ao seu povo, que resulta da sua luta abnegada pela unidade nacional e fim da ocupação. A presença do AKEL na sociedade cipriota é notável, desde os vários movimentos de massas que existem, dos trabalhadores, da juventude, da Paz, etc., até níveis para nós inimagináveis. As associações culturais em cada pequena localidade estão intimamente ligadas aos partidos, não só ao AKEL com também a outros, os clubes de futebol identificam-se politicamente, a própria cultura de beber vinho está ligada à política, existe o vinho da esquerda e o vinho da direita. Costuma-se dizer que em Chipre tudo é política, e com razão.

Sobre a actualidade do País, há mudanças desde que o AKEL conquistou a presidência e o governo do País?

AA – Tivemos oportunidade de participar num longo encontro com o presidente da República, Dimitris Christofias, um encontro no palácio da Presidência mas realizado num ambiente de fraterna camaradagem, em que o camarada Christofias nos explicou o conjunto de enormes desafios com que o país está confrontado. No actual momento, a acção do AKEL, quer enquanto partido comunista quer enquanto partido de governo, está centrada na resolução da questão cipriota, com vista a obter a reunificação com base numa solução bizonal e bicomunal, mas com uma única identidade política, uma única soberania, uma única política externa.
É um caminho com muitas dificuldades, ao qual o AKEL tem de dar prioridade em relação a outros problemas que o país enfrenta, que também sofre os efeitos da crise económica do capitalismo. Por exemplo, a ilha tem graves carências de água e é obrigada a gastar milhões de euros por ano para importar água, o turismo e a construção são dos sectores mais afectados. Do ponto de vista político, a situação é muito complexa, pois embora o AKEL disponha da presidência, o governo é de coligação. Há outros partidos que, apesar de integrarem a coligação governamental, têm os seus próprios projectos e calendários políticos e na prática fazem oposição ao governo.
Neste quadro de grandes desafios, só a profunda ligação do AKEL ao povo explica a enorme taxa de popularidade do presidente Christofias que atinge os 85 por cento. Mas, mesmo dando prioridade máxima à questão da reunificação, o Chipre começa a diferenciar-se dos restantes países da União Europeia pelo tipo de medidas que o seu governo está a adoptar para combater a crise e os seus indicadores macro-económicos mostram resultados positivos.

Que medidas são essas?

AA – O governo não se limita a apoiar os sectores produtivos, aposta fortemente no apoio directo às famílias e, em particular, aos jovens. Entre vários apoios aos estudantes, por exemplo, o governo abriu uma linha de financiamento directo, sem a mediação do sistema bancário, que permite aos jovens adquirir a sua casa. Trata-se de uma acção social escolar alargadíssima que reflecte ao mesmo tempo um investimento sério na educação e formação da nova geração.

Há avanços nas conversações sobre a reunificação?

Desde que o presidente Christofias tomou posse registaram-se enormes avanços nas negociações que estavam bloqueadas desde o anterior referendo. Já se realizaram 25 reuniões e já há acordo sobre muitas matérias, embora persistam alguns problemas e desacordos. Mas os avanços alcançados num tão curto espaço de tempo são uma demonstração da grande capacidade e firme determinação do AKEL em obter a reunificação do país com base numa solução que, como referem os camaradas cipriotas, deve ser definida pelos cipriotas e para os cipriotas. Este ano e o próximo serão decisivos para a conclusão com sucesso deste processo e por isso será importante fortalecer no nosso País o movimento de apoio e solidariedade com a justa causa cipriota.

Dois mártires pela paz

Dervis Ali Kavazoglou e Kostas Misiaoulis foram assassinados a tiro, em 11 de Abril de 1965, por uma organização fascista turco-cipriota. Kavazoglou era turco-cipriota, Misiaoulis, grego cipriota. Eram ambos militantes do AKEL e combatiam o chauvinismo e o fascismo que afundou as duas comunidades em sangrentos combates. Morreram abraçados dentro da viatura em que foram abatidos, tornando-se símbolos da amizade das duas comunidades e do seu desejo de viver em paz. Hoje, o seu nome é recordado anualmente no Chipre com um desfile que termina na deposição de flores junto aos respectivos túmulos. O seu exemplo inspira as novas gerações a procurar com determinação os caminhos da reunificação da ilha e da coexistência pacífica entre as duas comunidades cipriotas.


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