As palavras e os factos

Jorge Messias
Duas épocas e um paralelo.
Em Junho de 1360 nascia Nun'Álvares Pe­reira, filho de rei que era também prior e de mãe bur­guesa e ca­ma­reira da corte. A Eu­ropa ardia na in­ter­mi­nável «guerra dos cem anos», os povos mor­riam à fome e pros­pe­ravam os se­nhores da guerra. As su­ces­sivas re­voltas do «povo meúdo» im­pu­nham mão de ferro ao Poder. Os cos­tumes de­gra­davam-se. Os reis so­nhavam com a uni­fi­cação dos reinos eu­ro­peus, tal como agora. Mas sobre eles pre­va­lecia a au­to­ri­dade in­con­tes­tada do Papa.
Há poucos dias, em Viseu, perante uma assistência de oficiais generais das Forças Armadas e das Polícias, D. Januário Torgal Ferreira, bispo castrense, pregou uma homilia. Sem referir nomes em concreto, chamou «ladrões» aos grandes capitalistas, lembrou que a crise tinha raízes éticas e falou no Condestável como espelho de todas as virtudes e modelo de referência de uma sociedade que perdeu os seus valores. Porque Nun'Álvares praticara ao longo da sua vida todas as virtudes teologais: prudência, fé, caridade, justiça e temperança. «O Santo Nuno é capaz de vir na hora própria; faltam-nos modelos, faltam-nos referências, falta-nos a luz que vá à frente.»
A época de Nun'Álvares foi um longo des­fiar de cha­cinas, guerras, ra­zias e fos­sadas. Em 1373, com 13 anos de idade, é ar­mado ca­va­leiro. Desde então com­bate per­ma­nen­te­mente contra os cas­te­lhanos, par­ti­cipa nas cons­tantes in­trigas po­lí­ticas e é no­meado co­man­dante mi­litar (fron­teiro) do Alen­tejo. Feito Conde de Ourem herda toda a fa­bu­losa for­tuna do An­deiro. É no­meado Con­des­tável do Reino. Ocupa de­zenas de lo­ca­li­dades e cas­telos fiéis a Cas­tela e neles exerce o di­reito de saque feudal. Al­cança a vi­tória de Al­ju­bar­rota e par­tilha com D. João I os des­pojos con­quis­tados. Nun'Álvares, em Al­ju­bar­rota, tem 25 anos de idade. Detém a maior for­tuna de Por­tugal reu­nida na guerra, no saque e nas do­a­ções da coroa e da Igreja. Morre em 1431.

A cons­trução do mito

A primeira proposta de canonização do Condestável é muito antiga. Data de Março de 1674, parte do vigário-geral da Ordem dos Carmelitas e recolhe o poderoso apoio imediato do Congresso da Nobreza. Nesse documento invocam-se, como argumentos a favor da canonização, exactamente os mesmos de que Torgal Ferreira se socorreu quando se dirigiu aos oficiais-generais. Portugal só foi salvo quando a fé se aliou à força das armas. É esta a bússola que deve orientar os nossos passos. É pelo menos este o sentido que pode explicar o mistério do bispo castrense ter escolhido como tema central da homilia a corrupção da justiça em Portugal, o caótico estado da economia e a ética cristã como traço de união entre as virtudes teologais e o dever de agir, como na guerra. Os militares que tinham ido à missa comandam tropas e dirigem polícias que são agentes virtuais da repressão.
Muito do que se co­nhece acerca de Nun'Al­vares Pe­reira foi des­crito por Fernão Lopes, cro­nista dos sé­culos XIV e XV ex­tre­ma­mente ho­nesto e com raízes cam­po­nesas. No en­tanto morreu antes de com­pletar a «Cró­nica de D. João I», sendo então subs­ti­tuído nas fun­ções por Gomes Eanes de Zu­rara, de es­tirpe nobre e tra­di­ções guer­reiras. É a partir de então que se co­meça a vul­ga­rizar um perfil do Con­des­tável que nada tem a ver com o homem que ele foi: nem Deus, nem o Diabo.
Antes terá sido al­guém como muitos que se en­con­tram a cada passo na his­tória de todos os tempos: pi­e­doso, in­fle­xível e am­bi­cioso. O mito foi buscar às arcas da his­tória – so­bre­tudo ao con­des­tável francês Du­gues­clin, cé­lebre pela sua fe­ro­ci­dade na guerra; e à «don­zela de Or­leães» que a Igreja queimou viva para de­pois a ce­le­brizar – os traços de ca­rácter que agora se atri­buem a Nun'Al­vares Pe­reira. Cons­truiu-se o mito, venha então o altar.

A Igreja Católica joga forte nestas intrigas. Neste caso, constrói um homem que nunca existiu mas que convém invocar para melhor subjugar a opinião pública. Despojado, Nun'Álvares? Ele que foi senhor de Barcelos, Braga, Guimarães, Montalegre, Chaves, Ourém, Porto de Mós, Alter do Chão, Sousel, Borba, Vila Viçosa, Estremoz, Arraiolos, Montemor e Portel, Almada, Évora-Monte, Monsaraz, e de muitas outra terras mais... Refere Fernão Lopes: «tinha metade do reino em terras, rendas e outras dádivas». E o camarada Álvaro Cunhal, ao referir que só os rendimentos das doações feitas por D. João I, tinham sido avaliadas em 16 mil dobras cruzadas («As lutas de classes em Portugal») comentava: «Era mais bem pago do que o rei.»
Também importa recusar a afirmação de que Nun'Álvares, já próximo da morte, distribuiu a sua imensa fortuna aos pobres. Na verdade a quase totalidade dessa riqueza foi para a Casa de Bragança e para a Igreja. Foi escavar ainda mais o fosso entre pobres e ricos.
Ontem foi assim, tal como hoje continua a acontecer em Portugal.


Mais artigos de: Argumentos

O caso do futuro volátil

Durante décadas, de facto durante toda a sua vida adulta até que aquilo aconteceu, trabalharam. Duramente, mas com alguma tranquilidade: tinham optado, prudentemente, por subscrever aquilo que por cá se chamaria PPR e por lá tinha uma qualquer outra designação. Por lá, isto é, pelos Estados Unidos da América, país onde...