O Chora

Henrique Custódio
O ministro Manuel Pinho, após cornear, literalmente e de uma assentada, a Assembleia da República, o Governo a que pertencia, o cargo que ocupava e as regras básicas da civilidade, foi inevitavelmente despedido com os encómios da praxe – aqueles que, nos funerais, transformam qualquer morto num vivo acervo de virtudes.
As exéquias ao turbulento governante prolongaram-se num «jantar de homenagem» enjorcado pelos colaboradores que o acompanharam na aventura ministerial e, para parecerem muitos, organizaram-se em pequena multidão, que ia desde os motoristas e contínuos aos secretários de Estado, assessores e outros consultores, presentes e pretéritos.
Tudo isto dificilmente justificaria uma missa, e muito menos uma reportagem, quando um conviva salvou repentinamente a noite e o entremez.
Foi ele António Chora, o dirigente sindical da Autoeuropa, que fez questão de se apresentar no Solar dos Presuntos (local do repasto) para declarar solenemente ao Pinho, ao jantar e a Portugal que «o mi­nistro fez muito pela in­dús­tria do País».
Tão salvífica prestação valeu ao Chora um lugar à esquerda do ministro, pois claro, e o destaque da sua presença no jantar em todas as reportagens do evento, enquanto ao Diário de No­tí­cias dava a possibilidade de titular o seu relato com a ribombante afirmação «Ma­nuel Pinho fez jantar de des­pe­dida com tra­ba­lha­dores».
A confirmá-lo, ali estava o Chora a brindar, animadíssimo, entrechocando copos com o próprio governante.
Acontece que António Chora não é um simples operário entre os milhares da Autoeuropa: é sobretudo porta-voz da Comissão de Trabalhadores (CT) da empresa, papéis que lhe granjearam relevo nacional, no exercício dos quais conquistou inesgotáveis receptividades na Comunicação Social e aberta simpatia nos patrões e comentadores afins.
Simpatias, aliás, exemplarmente resumidas e fixadas numa crónica de Emídio Rangel, esse opinador fatal, que incensava o Chora porque «fez re­cuar os ana­cró­nicos sin­di­catos que temos no País», «tem con­se­guido travar as rei­vin­di­ca­ções sem nexo» e tem «pro­vado à sa­ci­e­dade que a de­fesa dos in­te­resses dos tra­ba­lha­dores pode ser con­ci­liada com a sal­va­guarda dos ob­jec­tivos e pro­pó­sitos da en­ti­dade em­pre­ga­dora». Por isso, lamentava que um plenário geral de trabalhadores tivesse «tramado o Chora» ao chumbar o pré-acordo que este havia cozinhado com a administração da Autoeuropa na sequência de mais uma chantagem, louvando-lhe, para cúmulo, a sua «imensa sa­be­doria» ao con­si­derar «que os tra­ba­lha­dores (seus camaradas de trabalho) con­fun­diram as pro­postas de mais fle­xi­bi­li­dade com perda de di­reitos ad­qui­ridos».
Adaptando o aforismo, «diz-me quem te apoia e dir-te-ei quem és». No caso do Chora, o seu sindicalismo fica reforçadamente «dito» com os apoios que ele próprio já concede a ministros especializados em falências e despedimentos colectivos.
Por isso não admira que Francisco Louçã, líder do Bloco de Esquerda, se tenha apressado a demarcar-se do Chora, declarando que «esse jantar não tinha ca­rácter de afir­mação po­lí­tica e a par­ti­ci­pação de An­tónio Chora re­porta ex­clu­si­va­mente a uma par­ti­ci­pação de ca­rácter pes­soal».
É que o Chora também é dirigente do Bloco de Esquerda e, convenhamos, não fica bem a uma «Esquerda a Sério» ter um membro da sua Comissão Política a jantar louvores ao ministro do Executivo que mais à direita tem governado nas últimas décadas...


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