Honduras, uma história mal contada

Das urnas do golpe ao golpe nas urnas

Anabela Fino
«Golpe de Estado nas Honduras» – foi assim que a influente cadeia de televisão norte-americana CNN começou por dar a notícia, a 28 de Junho, do sequestro e deportação do presidente constitucionalmente eleito Manuel Zelaya. Algum tempo depois, com a mudança do jornalista de turno, a manchete no écran da estação passou para «Sucessão forçada nas Honduras». Estava feito o «aviso à navegação» e dado o mote para a campanha de mistificação e mentira que desde então tem vindo a ser desenvolvida em relação ao que se passa nas Honduras.
Não se pense que a designação da coisa é uma questão de lana caprina. Bem longe disso. A prová-lo está o facto de os EUA, mais de dois meses depois da expatriação de Zelaya, ainda estarem a «estudar» se se trata ou não de um golpe de Estado. A dúvida tem vantagens para a Casa Branca. Por um lado, justifica a falta de medidas de pressão com efectivo alcance sobre os golpistas de Tegucigalpa, desde logo a suspensão da ajuda económica, estimada em mais de 680 milhões de dólares, e das relações comerciais, sendo que os EUA absorvem cerca de 70 por cento das exportações hondurenhas (até à data, Washington limitou-se a «suspender» a ajuda militar de 16,5 milhões de dólares e a emissão de vistos). Por outro lado, dá aos golpistas a suficiente margem de manobra para prosseguirem o simulacro de negociações para «resolver a crise», marcado por sucessivas declarações contraditórias do presidente usurpador Roberto Micheletti, enquanto vão ganhando o tempo necessário para organizarem o processo eleitoral. De referir que, um mês antes do golpe de Estado, as eleições gerais foram marcadas para 29 de Novembro, e que a campanha eleitoral começou a 31 de Agosto como se o país vivesse na mais completa normalidade.
O anormal da situação começa no pretexto invocado para o sequestro e deportação do presidente legítimo: Zelaya queria mudar a Constituição para se eternizar no poder. A mentira foi servida internacionalmente pela generalidade dos média e apresentada como motivo válido para justificar os golpistas.
Na verdade, o que Zelaya se propunha era realizar um referendo não vinculativo, a 28 de Junho, para determinar se os hondurenhos eram favoráveis à eleição de uma Assembleia Constituinte. Em caso afirmativo, a eleição dos deputados à Constituinte deveria realizar-se em simultâneo com as eleições gerais de 29 de Novembro (presidenciais, legislativas e autárquicas), ou seja, ao mesmo tempo do que a eleição do novo presidente. Significa isto que Zelaya não podia ser candidato à sua própria sucessão, já que a eventual reforma da Constituição, incluindo no respeitante aos mandatos presidenciais, só poderia vir a ocorrer muito depois de terminado o seu mandato.
Acresce que tanto Micheletti como os mandatários do poder legislativo e judicial que usurparam o poder com o apoio dos militares alegam não ter havido nenhum golpe de Estado com o sequestro e deportação de Zelaya porque... havia contra ele um mandado de prisão emitido pelo Supremo Tribunal. Curioso argumento e peculiar forma esta de a elite hondurenha «cumprir» as decisões judiciais. Em vez de prender o alegado criminoso põem-no fora do país, impedem o seu regresso e usurpam-lhe as funções. Um verdadeiro portento num Estado que se diz de Direito!
Para além de outros «pormenores» recambolescos, como a falsa carta de renúncia de Zelaya, com data de 26 de Junho, que chegou a ser apresentada, e o pretenso apoio de todos os quadrantes políticos ao governo de Micheletti, é de registar a campanha internacional desde logo desencadeada para apresentar o presidente eleito como um perigoso seguidor do seu homólogo venezuelano, Hugo Chávez, um aspirante a ditador que almejava perpetuar-se no poder. Num passe de mágica, os paladinos da democracia deixaram de aceitar a validade das eleições – mesmo quando reconhecidas como livres e justas por observadores internacionais, de acordo com os próprios padrões instituídos pelo sistema capitalista – e passaram as ver as consultas populares como um pecado capital. O que não deixa de ser curioso, já que nos últimos anos 13 dos 18 países da região alteraram a duração dos mandatos presidenciais, sem que isso suscitasse quaisquer apreensões... excepto nos casos em que a política dos países envolvidos deixou de ter como cartilha o seguidismo face aos EUA.
A título de curiosidade, vale a pena lembrar as palavras do escritor uruguaio Eduardo Galeano a propósito deste assunto: (...) Pergunto-me o que seria dos EUA se os seus habitantes continuassem a obedecer à sua primeira Constituição. A primeira Constituição dos Estados Unidos estabelecia que um negro equivalia a três quintas partes de uma pessoa. Obama não poderia ser presidente porque nenhum país pode ter como chefe de Estado três quintas partes de uma pessoa».
A campanha de manipulação e mentira levada a cabo pelos média incluiu ainda a tentativa – quase patética – de procurar fazer crer que os EUA nada tinham a ver com o assunto e que teriam mesmo «desaconselhado» a golpaça. Seria risível, se não fosse trágico. Basta pensar na dependência económica das Honduras face aos EUA e na presença de forças norte-americanas, tanto na base militar de Palmerola (conhecida como de Soto Cano), hoje dedicada sobretudo à espionagem, como a todos os níveis dos organismos que operam no país, para perceber o absurdo da tese da inocência de Washington. Talvez por isso se tenha também tentado fazer passar a ideia de que a Casa Branca terá sido ultrapassada pelo Pentágono, uma fórmula que se está a tornar recorrente para tentar manter o estado de graça de Obama.
Noutros azimutes, como em Portugal, a manipulação deu lugar a um silêncio ensurdecedor. As Honduras não são notícia.

O busílis da questão

No início do mandato nada fazia prever que Manuel Zelaya – eleito presidente à primeira volta em 2005 pelo Partido Liberal, um dos dois partidos tradicionais hondurenhos, com 49,9 por cento dos votos – entrasse em rota de colisão com os EUA, sobretudo tendo em conta que só dispunha de uma maioria relativa no Parlamento (48,4 por cento dos votos).
Mas o facto é que Zelaya prosseguiu na presidência a política de descentralização que já havia iniciado enquanto ministro, o que aprofundou o seu distanciamento da elite política da capital, e o primeiro grande embate com Washington terá ocorrido logo em Junho de 2006, quando o presidente anunciou a intenção de transformar a base militar de Soto Cano num aeroporto comercial. O Pentágono não gostou da ideia, apesar de oficialmente se tratar de uma pequena base, com 600 militares (GlobalSecurity.org). Sucede no entanto que a sua pista é a única da América Central com capacidade para receber grandes aviões para o transporte de tropas. Construída em 1985 pelos EUA, no contexto da luta contra o governo sandinista da Nicarágua, a base tem a honra de acolher um destacamento da força de elite «Bravo», a única do Comando Sul situada fora dos EUA.
Registe-se, a propósito, que a base está actualmente sob as ordens do coronel Richard A. Juergens, que segundo o sítio Rede Voltaire terá sido o mesmo militar norte-americano que dirigiu o sequestro do presidente haitiano Jean-Bertrand Aristide quando ocupava o cargo de director de Operações Especiais do Special Operations Command.
Os ataques na imprensa ao novo governo não se fizeram esperar, subindo de tom quando a luta contra a corrupção desenvolvida por Zelaya obrigou vários altos funcionários a demitir-se. Terá então começado a conspiração. Um dos maiores escândalos vindos a público, por exemplo, foi o envolvimento do ex-director da companhia pública de telefones, acusado de ter feito escutas na presidência da República.
Mas é com o desencadear da crise do subprime nos EUA que tudo se precipita. Confrontado com a escalada do preço dos combustíveis e dos alimentos básicos, Zelaya volta-se para a Alternativa Bolivariana para as Américas (ALBA), organização intergovernamental de iniciativa venezuelana que – ao contrário do Tratado de Livre Comércio que as Honduras também subscreveram com os EUA – garante a segurança alimentar e energética aos estados membros, entre outros aspectos.
A adesão à ALBA ocorreu a 25 de Agosto de 2008, numa sessão pública em Tegucigalpa em que participaram mais de 100 000 pessoas, na presença dos presidentes Hugo Chávez, da Venezuela; Evo Morales, da Bolívia; Daniel Ortega, da Nicarágua, Leonel Fernández, da República Dominicana; e do vice-presidente cubano Carlos Lage.
A decisão teve um inequívoco apoio popular, mas Zelaya passou a ser rotulado de «populista» e as Honduras sob o seu governo passaram a integrar o rol das repúblicas rebeldes.
Segundo a investigadora da Universidade Nacional Leticia Salomón, especialista em questões militares hondurenhas, os mentores do golpe que derrubou Zelaya estão perfeitamente identificados. «Foi planeado por um grupo empresarial liderado por Carlos Roberto Facussé, ex-presidente das Honduras (1988-2002) e dono do jornal La Tribuna, que juntamente com La Prensa, El Heraldo, os canais de TV 2, 3, 5 e 9 foram o pilar fundamental do golpe» (Público.es/ 05-08-2009).
O grupo a que se refere a investigadora inclui Jaime Rosenthal e Gilberto Goldstein, dirigentes do Grupo Continental, o empório que domina a banca hondurenha, a agro-indústria e meios de comunicação como El Tiempo e Canal 11; José Rafael Ferrari; Juan Canahuati; o financeiro Camilo Atala; o industrial de madeiras José Lamas; o empresário do sector da energia Fredy Násser; Jacobo Kattán; o industrial do açúcar Guillermo Lippman; e o construtor Rafael Flores, que em conjunto controlam 90 por cento da riqueza do país.
Se a isto se acrescentar os interesses das multinacionais ligadas ao sector farmacêutico, exploração de matérias-primas e, sobretudo, os rumores da existência de petróleo nas Honduras e de acordos de Zelaya com a Venezuela neste domínio, temos os elementos para a radiografia do que se passou e está a passar nas Honduras onde, depois uma ida às urnas ter servido de pretexto para o golpe, se prepara agora o golpe nas urnas.

É bom saber...

● Segundo a ministra das Finanças do governo legítimo das Honduras, Rebeca Santos, em três anos de administração do presidente Zelaya a inflação no país atingiu o seu nível mais baixo dos últimos 16 anos e os índices de pobreza foram reduzidos em 10 por cento;
● O empresário Roberto Micheletti (actual «presidente») é dono da empresa de transportes urbanos (TUPSA), que viu os seus lucros caírem quando Zelaya conseguiu baixar o preço dos combustíveis graças à adesão à ALBA e exigiu a redução do preço dos transportes;
● As multinacionais dominam 60 por cento do sistema financeiro hondurenho;
● Marcas como a Nike e Adidas expressaram ao Departamento de Estado dos EUA o seu apoio ao «governo de facto» de Micheletti;
● Nas Honduras, mais de 80 por cento dos medicamentos são fornecidos por multinacionais (Glaxo, Sanofi, Smiyh Kline, Pfizer, Stein, Novartis, Bristol Myers, Aventis), sendo a matéria-prima para a sua produção 100 por cento importada.
● No início de 2009, após a adesão à ALBA e na sequência de acordos com Cuba, o governo de Zelaya tentou comprar medicamentos genéricos para fazer face aos elevados preços praticados pelas multinacionais; não o pôde fazer. As multinacionais intervieram através do colégio químico-farmacêutico, que invocou questões burocráticas para impedir as importações de Cuba a preços acessíveis;
● O diário La Prensa, na sua edição de 29.03.09 (exactamente três meses antes do golpe), noticiava no seu espaço «Negócios» que, segundo o ministro de Recursos Naturais e Ambiente, Tomás Vaquero, a empresa Petróleos de Venezuela, Pdvsa, estava interessada em explorar petróleo nas Honduras;
● Uma das primeiras medidas anunciadas pelo usurpador Micheletti foi a constituição de uma comissão do Congresso (Parlamento) para estudar a retirada das Honduras da ALBA;
● Em entrevista ao Público (28.08.09), a historiadora venezuelana Margarida López Maya, questionada sobre o projecto de Chávez – a tal influência maligna do liberal Zelaya – afirma que «assistimos a uma marcha forçada para o socialismo», mas que na realidade «é um modelo cada vez mais autoritário». Sobre as principais forças de Chávez, a historiadora é peremptória: «Indubitavelmente a eterna fraqueza da oposição venezuelana. E as garantias que dá um Estado que vive das receitas e as redistribui aos sectores mais pobres, como fez muito o governo de Chávez» (o sublinhado é nosso, sem comentários).