Jogo viciado

João Ferreira
Estávamos em Setembro, em vésperas do segundo referendo ao Tratado de Lisboa na Irlanda e em pleno período de campanha eleitoral. Sabemo-lo bem – mas não será nunca demais relembrar – este foi o único país da UE em que o povo se pôde pronunciar sobre um tratado que terá profundas implicações no devir colectivo dos povos dos países que integram a UE. O povo irlandês disse não. Mas a sua decisão não foi respeitada. E um segundo referendo lhe foi imposto, decorrido pouco mais de um ano sobre o primeiro...
Dizia então que estávamos em Setembro último, em plena farsa eleiçoeira, a poucos dias do final previsto por quem cuidadosamente a encenou. Da Irlanda chegavam ecos de uma avassaladora e despudorada campanha de condicionamento do sentido de voto dos irlandeses. No parlamento europeu, em Estrasburgo, em plena sessão plenária, um deputado irlandês do Grupo da Esquerda Unitária Europeia/Esquerda Verde Nórdica questionou o presidente da Comissão Europeia, José Manuel Barroso, sobre a presença na Irlanda de funcionários da Comissão Europeia, que estariam a participar em acções de «informação», «esclarecimento» e propaganda, em diversas escolas do país.
Barroso não respondeu.
Mas os comunistas portugueses não deixaram a questão cair em saco roto. Poucos dias depois, perguntavam à Comissão, por escrito: «que iniciativas decorreram na Irlanda, sobre o Tratado de Lisboa, promovidas ou financiadas pela Comissão Europeia, ou com participação de funcionários seus? Qual o conteúdo e objectivos dessas iniciativas?».
A resposta chegou no final do ano, três meses depois do referendo (e do resultado previsto) e três semanas depois da entrada em vigor do tratado. Com um detalhe e clareza inesperados, que dispensam comentários. É uma resposta digna de registo, para memória futura.

A Co­missão con­fessa-se

Diz-nos a Comissão que uma das suas missões «é con­tri­buir para um de­bate in­for­mado sobre a União Eu­ro­peia, trans­mi­tindo in­for­mação fac­tual, exacta e clara aos ci­da­dãos. A in­for­mação sobre o novo Tra­tado de Lisboa, que foi as­si­nado e ra­ti­fi­cado por todos os Es­tados-Mem­bros e apoiado pelo Par­la­mento, ins­creve-se no âm­bito dessas mis­sões».
E dito isto, a Comissão constatou que na Irlanda existia «um dé­fice de in­for­mação sig­ni­fi­ca­tivo sobre a EU» – outra coisa, de resto, não seria de esperar, só assim se compreende o «desinformado» «não» dado pelos irlandeses ao tratado – facto comprovado aliás pela «in­ves­ti­gação efec­tuada e as con­clu­sões do re­la­tório do sub­co­mité do Par­la­mento ir­landês (Oi­re­a­chtas), de No­vembro de 2008», feito na sequência do primeiro chumbo. E prossegue, dizendo que «para col­matar essa la­cuna, o Par­la­mento Eu­ropeu e Co­missão Eu­ro­peia as­si­naram, em Ja­neiro de 2009 e por três anos, um me­mo­rando de en­ten­di­mento para co­mu­nicar sobre a Eu­ropa em par­ceria com o Go­verno ir­landês.
«No âm­bito deste me­mo­rando, e em es­treita co­la­bo­ração com o go­verno ir­landês e o Ins­ti­tuto do Par­la­mento Eu­ropeu na Ir­landa, foram re­a­li­zadas vá­rias ac­ti­vi­dades com o ob­jec­tivo de fo­mentar uma maior com­pre­ensão da UE junto dos ir­lan­deses.
«A Co­missão pro­moveu, por exemplo, onze dis­cus­sões pú­blicas sobre a UE na Ir­landa, uma ini­ci­a­tiva na­ci­onal de di­vul­gação do tra­balho da UE em prol dos con­su­mi­dores, um con­curso de en­saio di­ri­gido aos alunos do en­sino se­cun­dário e ainda ac­ti­vi­dades na In­ternet, como a cri­ação de um novo sítio in­te­rac­tivo e a or­ga­ni­zação de uma rede para tra­balho so­cial. No âm­bito da ini­ci­a­tiva “Re­gresso à es­cola”, que pro­move a vi­sita de fun­ci­o­ná­rios das ins­ti­tui­ções eu­ro­peias às an­tigas es­colas se­cun­dá­rias que fre­quen­taram, cerca de 87 fun­ci­o­ná­rios ir­lan­deses vi­si­taram 101 es­colas em 24 con­dados.
«A Co­missão or­ga­nizou igual­mente, em con­junto com o Mi­nis­tério dos Ne­gó­cios Es­tran­geiros ir­landês, al­gumas ses­sões de in­for­mação de­sig­nadas “Factos sobre o Tra­tado de Lisboa” des­ti­nadas às or­ga­ni­za­ções in­te­res­sadas, in­cluindo or­ga­ni­za­ções não go­ver­na­men­tais (ONG) e au­to­ri­dades re­gi­o­nais. Em 2009 foram ainda re­a­li­zadas seis con­fe­rên­cias em con­junto com as prin­ci­pais or­ga­ni­za­ções de mu­lheres ir­lan­desas.
»
Palavras para quê? Em nove meses, convenhamos, era difícil fazer mais…
É este o sentido do chamado «jogo democrático» numa sociedade de classes. Os poderosíssimos e diversificados meios de condicionamento ao serviço da classe dominante são um dado fundamental deste jogo viciado. Quando não são, por si só, condição suficiente para o vencer à primeira, mudam-se as regras e, se necessário, volta-se à casa de partida, com arsenal reforçado.
Até um dia…


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