A falsa liberdade de escolha

Bernardino Soares (Membro da Comissão Política do PCP)

Sistematicamente, nos discursos do grande capital, especialmente nos sectores sociais e no da saúde em particular, surge a ideia da liberdade de escolha. Associando a ideia de liberdade à de autonomia individual da escolha procuram convencer-nos de que cada cidadão deve poder ter acesso a um serviço de acordo exclusivamente com a sua vontade, independentemente de ser público ou privado.

A maioria das unidades privadas subsiste à conta de transferências do OE

Na prática o que pretendem é que o Estado pague sempre a conta do serviço de saúde, mesmo se privado, e se remeta cada vez mais ao papel de mero financiador, abdicando dos serviços públicos.

Não se discute que possam existir unidades privadas e que o Estado possa recorrer a elas quando não dá resposta em tempo útil. O que se rejeita é a política que há vários anos está em curso de favorecimento do sector privado.

O que acontece hoje em inúmeras situações é uma total ausência de liberdade de escolha, uma vez que, para milhares de consultas, exames, cirurgias e tratamentos, o utente não tem a liberdade de escolher o serviço público, ou porque o SNS no seu caso não dá resposta a tempo ou, na maioria dos casos, porque tendo capacidades não aproveitadas mesmo assim envia utentes para o sector privado. O utente é assim de facto obrigado a escolher o serviço privado, mesmo que pago pelo Estado. Não há aqui liberdade de escolha alguma, mas isso já não parece preocupar os arautos da privatização.

Casos há, como o da hemodiálise, em que o fundamental da prestação está na mão de privados – duas multinacionais neste caso –, que beneficiam de uma política de desinvestimento público (há uns meses o Governo recusou-se a responder à pergunta de quantas unidades de hemodiálise tinham sido construídas nos hospitais públicos nos últimos anos e quantas iriam sê-lo nos próximos – simplesmente porque a resposta é zero) e impõem os preços e as condições ao Estado, sob pena de não tratarem os doentes.

É por isso aliás que o tão falado papel regulador do Estado, artifício utilizado para criar a ideia de que se continuaria a garantir a qualidade mesmo transferindo a prestação para o privado, não tem qualquer viabilidade sem a existência de um forte sector prestador público. Se o Estado não tem alternativa, então não regula, não controla nem fiscaliza – obedece.

 

O que se esconde

 

Frequentemente invocam também a ideia da concorrência, para que só os melhores prestem serviços. Claro que escondem desde logo que a maioria das unidades privadas e em particular os grandes hospitais subsistem à conta de transferências do Orçamento do Estado. E que discriminam os utentes públicos dando prioridade aos dos seguros de saúde e outros privados. Aquilo a que chamam concorrência mais não é do que uma mal disfarçada parasitagem dos recursos públicos a favor dos lucros privados.

É também falsa a ideia de que o privado presta serviços mais baratos. Na realidade dedica-se preferencialmente às áreas de menor risco e maior potencial lucrativo, deixando de lado as áreas mais pesadas; os seus hospitais não têm de ter todas as valências e serviços que um hospital público abrange – só aquelas que são vantajosas; utilizam vínculos laborais e estatutos remuneratórios mais degradados do que os serviços públicos (salvo quando se trata de atrair profissionais de referência); não têm preocupações de articulação com outras unidades, como os centros de saúde; podem limitar o acesso à urgência; não têm obrigações em matéria de políticas de saúde pública ou de promoção da saúde. E mesmo assim só são mais baratos quando impera a má gestão nas unidades públicas.

Não se trata também de uma questão de qualidade. É bem conhecido que os magnatas nacionais, quando o caso é sério, vão para os hospitais públicos; e que as maternidades privadas (a quem são exigidos menos requisitos do que às públicas), quando um parto se complica, o enviam para as unidades públicas.

A entrega progressiva da saúde aos grandes grupos económicos não é complementar ao SNS. A não ser que se dupliquem as verbas para a saúde, o dinheiro que vai para os grupos privados é dinheiro que falta nos serviços públicos; a não ser que «importem» utentes, os que são empurrados para o sector privado são os que, a não ser assim, utilizariam o SNS. É por isso que a liberdade de escolha que os grupos económicos realmente querem é a liberdade de eles próprios escolherem e atraírem os utentes que lhes convém com o respectivo financiamento público. Seria o caminho do definhamento do SNS, transferindo o financiamento para o privado. Seria para além disso a total desorganização da rede de serviços de saúde, esquartejada por interesses concorrentes e contraditórios.

Naturalmente, os privados perseguem o maior lucro possível e por isso condicionam a organização dos cuidados a esse objectivo.

É por isso que só o Serviço Nacional de Saúde está em condições de garantir a todos os cidadãos cuidados de saúde de qualidade.



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