«Quem não tem vergonha, todo o mundo é seu ...»

Jorge Messias

Quando se con­si­dera a vi­sita ofi­cial de quatro dias que Bento XVI fez a Por­tugal; quando se sabe, como é evi­dente, que um país pe­ri­fé­rico e pobre como o nosso é um jo­guete nas mãos da­queles que vivem da mi­séria alheia e da ex­plo­ração dos tra­ba­lha­dores; quando numa re­a­li­dade so­cial como esta o poder po­lí­tico e o poder fi­nan­ceiro caem nas mãos de men­ti­rosos e de ex­plo­ra­dores; quando, fi­nal­mente, a vi­sita do Papa prova, de uma vez por todas, que a Igreja ca­tó­lica re­pre­sen­tada pelo Va­ti­cano é cúm­plice as­su­mido e sócio oculto dos ne­gó­cios do grande ca­pital... te­remos então en­con­trado as ver­da­deiras ra­zões por que Rat­zinger es­co­lheu estar pre­sente em Por­tugal para desse modo aben­çoar ta­ci­ta­mente o agra­va­mento do saque a que Só­crates e os seus mi­nis­tros sub­metem o nosso povo. Não se fale em re­li­gião mas em obs­cu­ran­tismo. E não per­mita o povo o re­torno aos tempos do «Deus, Pá­tria e Fa­mília» ou do «Pro­duzir e poupar». Sa­lazar im­punha então, por de­trás de uma fa­chada ca­tó­lica, a uni­dade na ser­vidão e a feroz ex­plo­ração dos tra­ba­lha­dores. Era a con­sa­gração de uma igreja fas­cista apoi­ante de um ca­pi­ta­lismo sel­vagem. En­ri­quecer exigia do­minar, fazer tra­ba­lhar de sol a sol, cortar nos sa­lá­rios, impor ao povo a ce­dência dos seus di­reitos. Rezar,sig­ni­fi­cava re­sig­nação e im­po­tência fa­ta­lista. Ig­no­rância,era o elo mais forte das gri­lhetas que ma­ni­e­tavam o povo e o su­jei­tavam à ti­rania dos po­de­rosos.

Es­ta­remos a um passo do re­gresso a esta si­tu­ação? Há in­dí­cios se­guros que sim. A vi­sita ofi­cial de Bento XVI é a prova pro­vada de que a Igreja ins­ti­tu­ci­onal despe a capa da san­ti­dade e adere de alma e co­ração às po­lí­ticas re­ac­ci­o­ná­rias que con­duzem o nosso povo à mi­séria e ao ca­ta­clismo final. A Igreja con­tinua a de­sem­pe­nhar o seu papel his­tó­rico de «ópio do povo».

Os «mi­la­gres» de Fá­tima

 

Desde sempre, os «mis­té­rios» de Fá­tima foram a par com a as­censão do fas­cismo. A cha­mada Apa­rição da Se­nhora «mais branca do que o Sol» serviu-se da cons­trução de um mito para trans­mitir aos povos uma men­sagem po­lí­tica al­ta­mente re­ac­ci­o­nária: visão do in­ferno e pe­dido de con­sa­gração da Rússia bol­che­vique e do «so­fri­mento» dos papas e dos povos cau­sado pelo ateísmo mi­li­tante. Para res­pon­derem po­si­ti­va­mente às in­vo­ca­ções de Maria, os crentes de­viam co­locar-se à margem das rei­vin­di­ca­ções, obe­de­cendo às pa­la­vras de ordem ce­les­tiais de «pe­ni­tência» e «oração» (rezas à San­tís­sima Trin­dade, ao Ima­cu­lado Co­ração de Maria, ao des­fiar do terço, etc.). Se­gundo os textos da Igreja por­tu­guesa, cam­peava então em Por­tugal a fúria ma­çó­nica e ja­co­bina e a Igreja so­fria… Na Rússia, triun­fava o co­mu­nismo mar­xista «que veio a re­velar ten­dên­cias im­pe­ri­a­listas». Fir­mara-se con­cor­datas com os es­tados fas­cistas. Então, reza a dou­trina, «a fé re­moveu mon­ta­nhas», esses riscos foram de­be­lados e a in­fluência di­vina re­posta. A Igreja re­a­firmou-se apo­lí­tica: o Mis­tério e o Sa­cra­mento não se imis­cuem nos ne­gó­cios hu­manos: con­tem­plam e rezam. O que não im­pediu o Va­ti­cano de se re­velar como o mais po­de­roso ba­lu­arte do ca­pi­ta­lismo.

Agora, em plena crise ca­pi­ta­lista e cer­ta­mente pres­si­o­nado pela pre­sente si­tu­ação ca­tas­tró­fica da eco­nomia e pelos es­tron­dosos in­su­cessos da «glo­ba­li­zação», o as­tuto Rat­zinger en­trou em con­tra­dição com a so­lidez da ló­gica te­o­ló­gica ca­tó­lica. A te­o­logia ecle­sial re­gista que a Igreja está no mundo para evan­ge­lizar. A sua missão é di­vina e in­tem­poral. Não é po­lí­tica, fi­nan­ceira, nem se­quer eco­no­mi­cista.

Mas em Lisboa, de vi­sita a Por­tugal, o Papa, cer­ta­mente pres­si­o­nado pelas di­men­sões da crise e pelos ne­gó­cios em curso entre o Es­tado por­tu­guês e o Va­ti­cano, mudou de ideias e apelou à in­ter­venção ac­tiva dos ca­tó­licos em áreas como «a fa­mília, a cul­tura, a eco­nomia e a po­lí­tica», de­le­gando no car­deal-pa­tri­arca por­tu­guês o cui­dado de tran­qui­lizar os po­ten­ciais con­cor­rentes: «Não ti­ra­remos o lugar a nin­guém»... Tudo pa­leio de co­mer­ci­antes.

A etapa his­tó­rica em que es­tamos ra­pi­da­mente a en­trar é de co­lisão frontal entre os in­te­resses ins­ta­lados. Não sobra muito o es­paço para cor­te­sias. Só uma via trans­forma a so­ci­e­dade e cons­trói o fu­turo: a da luta de classes. É esta a pers­pec­tiva que o eixo igreja/​ca­pital pro­curam a todo o custo eli­minar.

Entre os tra­ba­lha­dores sobe de nível a cons­ci­ência de que assim é. Só uma po­lí­tica pode res­ponder à pro­gres­siva vi­o­lência co­me­tida pelo grande ca­pital contra a força dos tra­ba­lha­dores: cerrar fi­leiras, lutar, re­sistir e vencer!



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