De «picnicão»

Henrique Custódio

Durante todo o passado domingo a RTP-1 montou um dispendioso espectáculo no Parque Eduardo VII, em Lisboa, sob o pretexto de «saudar» a partida da selecção portuguesa de futebol para o Campeonato do Mundo, na África do Sul.

Raramente tão manifesto entremez mereceu tão dispendioso aparato: emissões directas durante todo o dia e um milionário elenco encabeçado por Tony Carreira – o actual campeão das audiências e dos cachets da música pimba – atraíram a indispensável multidão de «apoiantes» (a RTP estimou-os, eufórica, em 80 mil), uma cadeia de supermercados explorou o negócio patrocinando o inevitável «picnicão» e uma frota de autocarros, fretada por tão discretos como empenhados «beneméritos» (sempre pródigos, sobretudo quando «patrocinam» com dinheiros públicos), asseguraram a mise-en-scène indispensável para credibilizar aquela «despedida nacional» dos «navegantes» (apodo dos seleccionados, ao que consta gizado pelo treinador Queirós).

Para cumprir tão ingente desígnio, o canal público mobilizou recursos técnicos e humanos de alto custo, montou cenários dispendiosos e gastou rios de dinheiro.

É claro que o Parque Eduardo VII foi apenas o local apoteótico do entremez, onde o autocarro despejou os «navegantes» para uma última paragem e os derradeiros aplausos da «pátria», na sua viagem para o aeroporto.

Entretanto, a própria viagem dos jogadores a caminho do embarque para a África do Sul seria o objecto do dia para todos os canais televisivos, havendo vários momentos em que todos eles se acotovelaram no éter e no percurso citadino para filmar o autocarro dos jogadores em todas as posições, incluindo as inacreditáveis - que eram quase todas.

Na verdade, pôr um país inteiro a olhar, minutos sem fim, para as lentas manobras de um autocarro, é notoriamente inacreditável.

Esta demencial cobertura televisiva havia recebido o devido mote com as visitas e os cumprimentos personalizados aos jogadores da selecção realizados pelo Presidente da República, Cavaco Silva, e o primeiro-ministro, José Sócrates.

Ambos não perderam a dupla oportunidade de beneficiar da popularidade da selecção e de desviar para ela - e para o futebol - as atenções do País. As televisões perceberam-nos, evidentemente.

Todavia, a escolha do local para tão desenfreada cobertura televisiva – junto ao Marquês de Pombal - não deixa de ser cruamente elucidativa sobre os critérios jornalísticos e editoriais dos canais televisivos cá do burgo.

É que naquele mesmo local havia-se concentrado, há dias, a maior manifestação da CGTP-IN nos últimos 30 anos – mais de 300 mil pessoas vindas de todo o País – que marcharam avenida abaixo protestando vigorosamente contra o PEC e os brutais cortes impostos pelo Governo contra os trabalhadores.

Significativamente, nem um único canal de televisão fez a cobertura directa do acontecimento e, mesmo nos noticiários, o assunto foi tratado quase de raspão.

Pelos vistos, nesta democracia, importante para o povo e o País é a viagem de autocarro dos jogadores da bola, a caminho do aeroporto.



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