A bola e os resto

Correia da Fonseca

Nunca como nestes dias, de­certo, a atenção de quase todos os por­tu­gueses es­teve vol­tada para a África do Sul, nem mesmo nos dias tu­mul­tu­osos e dra­má­ticos da des­co­lo­ni­zação, quando mi­lhares de por­tu­gueses ali se aco­lheram a buscar re­fúgio contra medos vá­rios e, em al­guns casos, cas­tigos me­re­cidos. Agora, fe­liz­mente, as coisas são di­fe­rentes, os ve­lhos medos são uma es­tória an­tiga e foram subs­ti­tuídos por ex­pec­ta­tivas quanto a uma so­nhada glória fu­te­bo­lís­tica. En­tre­tanto a te­le­visão não es­teve pa­rada, bem pelo con­trário: dia após dia, quase hora após hora, veio contar-nos como es­tavam os fu­te­bo­listas por­tu­gueses pre­sentes no Mun­dial, o que fa­ziam, o que pen­savam, as re­fle­xões do Ro­naldo, a in­fe­li­ci­dade do Nani, a par das sa­be­do­rias de uma chusma de co­men­ta­dores e ana­listas do fe­nó­meno fu­te­bo­lís­tico, todos eles tão ma­ni­fes­ta­mente sá­bios que é de crer que se o Mun­dial fosse de sa­be­do­rias e sen­tenças o tor­neio es­tava no papo de Por­tugal. Pa­ra­le­la­mente e em se­gundo plano veio aquela no­tícia do as­salto noc­turno a jor­na­listas por­tu­gueses (e um es­pa­nhol, o que nos im­pres­si­onou pouco porque não temos de afli­girmo-nos com o que acon­tece a cas­te­lhanos): um dos nossos até terá acor­dado com um re­vólver apon­tado à ca­beça, ma­neira de­sa­gra­dável de des­pertar. Pa­rece que os me­li­antes foram pron­ta­mente de­tidos pela po­lícia sul-afri­cana e que foi re­cu­pe­rada uma boa parte do ma­te­rial então rou­bado, o que depõe em favor da efi­cácia po­li­cial do país afri­cano e con­trasta com o que por cá é cos­tume em si­tu­a­ções com­pa­rá­veis. Mas esse êxito das ha­bi­tu­al­mente cha­madas «forças da ordem» não apagou o susto so­frido pelos as­sal­tantes nem im­pediu que du­rante al­guns dias a TV nos trou­xesse co­men­tá­rios acerca do clima de in­se­gu­rança e vi­o­lência que per­siste no quo­ti­diano da África do Sul. Co­men­tá­rios que por mais de uma vez in­cluíram uma abor­dagem de algum modo re­tro­ac­tiva, ou­vindo-se mesmo que a Re­pú­blica da África do Sul sempre foi assim e assim vai con­ti­nuar a ser. Só faltou ouvir-se dizer que o mo­tivo desse triste des­tino é o de se tratar de uma «re­pú­blica de pretos», o que muitos terão pen­sado sem que se atre­vessem a dizê-lo di­ante das câ­maras.

O de­creto e as ruas

Assim, acon­teceu que du­rante um dia ou dois, talvez apenas du­rante al­gumas horas, ao dis­curso em tom pa­trió­tico e quase an­te­ci­pa­da­mente he­róico que a te­le­visão pro­duziu se adi­ci­o­naram, numa es­pécie de con­tra­ponto dis­creto, co­men­tá­rios de­pre­ci­a­tivos e aliás não des­ti­tuídos de fun­da­mento sobre a ac­tual so­ci­e­dade sul-afri­cana. Com a vi­o­lência como ponto de apoio, na­tu­ral­mente, e apoio fun­da­men­tado nos factos. Como, porém, é de bom-tom e, no caso do te­le­jor­na­lismo, é mesmo de bom rigor de­on­to­ló­gico, não basta avançar com a de­pre­ci­ação e é pre­ciso es­gra­vatar pelo menos um pouco em busca das raízes dos factos. E no caso da África do Sul nem é pre­ciso es­gra­vatar muito: basta re­cuar umas dé­cadas, en­con­trar a bru­ta­li­dade do apartheid e dos mons­tru­osos crimes que ele im­plicou, con­cre­ti­zados não só no muito sangue dos efec­tivos es­cravos que abun­dan­te­mente correu mas também na mi­séria atroz a que mi­lhões foram con­de­nados. Mais: é for­çoso re­ferir, por im­po­sição de uma ele­mentar ho­nes­ti­dade in­te­lec­tual, que a con­de­nação de massas ne­gras a um quo­ti­diano de ex­plo­ração e pri­va­ções da mais va­riada ordem não ter­minou com o fim do ra­cismo de Es­tado, ofi­ci­al­mente pa­tro­ci­nado, e pros­se­guiu como não podia deixar de pros­se­guir numa so­ci­e­dade re­gida pelas leis dos re­gimes ca­pi­ta­listas. Sabe-se, sabe-o qual­quer um mesmo nesta Eu­ropa ainda apesar de tudo pri­vi­le­giada, que a de­mo­cracia de re­corte bur­guês e do­mi­nada pela grande bur­guesia é uma coisa óp­tima, mas não para todos, so­bre­tudo apenas para al­guns poucos, e sa­bendo-se isso não é di­fícil en­tender que as vi­o­lên­cias de di­versos tipos não po­diam ser ex­tir­padas da África do Sul pela força de um de­creto que ex­tin­guisse for­mal­mente a se­gre­gação sem que con­tudo ex­tin­guisse a ex­plo­ração. Neste quadro, talvez se jus­ti­fi­casse que a TV apro­vei­tasse esta ida à África para fazer re­por­ta­gens acerca do quo­ti­diano sul-afri­cano. E então se veria, creio, que acordar com um re­vólver apon­tado à ca­beça não é acon­te­ci­mento de es­tra­nhar num país onde, de­sa­fi­ando pro­gressos de­certo ha­vidos, a fome ainda es­corre nas ruas onde em tempos o sangue es­correu quase di­a­ri­a­mente.



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