Avanteatro aposta na qualidade e na variedade

Arte e transformação social

Gustavo Carneiro

A Festa não seria a Festa se não as­so­ci­asse às mais va­ri­adas ex­pres­sões ar­tís­ticas e cul­tu­rais de re­co­nhe­cida qua­li­dade uma von­tade imensa de de­nun­ciar as in­jus­tiças – pri­meiro e de­ci­sivo passo para trans­formar o mundo que as cria e eter­niza. É isso que fará, uma vez mais, o Avan­te­atro ao longo de dois dias e meio de te­atro, mú­sica, dança, po­esia e ci­nema – como sempre à dis­po­sição do vi­si­tante da Festa, qual­quer que seja a sua origem, pro­fissão ou for­mação.

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2010 foi as­su­mido pela União Eu­ro­peia como o ano de com­bate à po­breza e ex­clusão so­cial, em­bora tal ini­ci­a­tiva pouco mais es­teja a ser do que um con­junto de belas pa­la­vras e pi­e­dosas in­ten­ções. Na prá­tica, vê-se pre­ci­sa­mente o con­trário: o au­mento do nú­mero de po­bres, o alar­ga­mento do fosso entre estes e os mais ricos, bem como o sur­gi­mento de novas e mais ex­tremas formas de ex­clusão so­cial.

Na edição deste ano da Festa do Avante!, no­me­a­da­mente no Avan­te­atro, es­tarão pre­sentes as ques­tões so­ciais e a luta do nosso povo – tra­du­zindo a luta po­lí­tica em «es­pec­tá­culos de grande qua­li­dade». Quem o diz é Pedro Lago, do Exe­cu­tivo da Festa, res­pon­sável pelo es­paço das artes de palco. Ma­nuel Men­donça, da Co­missão do Avan­te­atro, lembra que o Par­tido e a Festa «sempre ti­veram pre­sentes estas re­a­li­dades, com ou sem anos eu­ro­peus». Mas sendo este o ano que é «re­sol­vemos não ficar in­di­fe­rentes a isto», le­vando à cena duas peças em que al­gumas ex­pres­sões destas re­a­li­dades são abor­dadas de forma pun­gente: Tu­ning, pela Com­pa­nhia de Te­atro de Al­mada (ver texto nestas pá­ginas), e Sa­guão, pelo Te­atro dos Aloés.

No pri­meiro texto aborda-se a mar­gi­na­li­dade ju­venil num su­búrbio, e no se­gundo de­nuncia-se al­gumas das si­tu­a­ções mais de­gra­dantes da nossa so­ci­e­dade, através de três per­so­na­gens que ha­bitam um sa­guão cheio de imun­dí­cies. Le­van­tando um pouco o pano, Ma­nuel Men­donça afirma que Sa­guão «mostra a de­si­lusão da­quelas pes­soas, apon­tando sempre o dedo a quem as em­purrou para aquele local». A peça ori­ginal ita­liana, da au­toria de Spiro Sci­mone, venceu o prémio Ubu para a me­lhor peça de te­atro ita­liana em 2004. Na opi­nião de Ma­nuel Men­donça, estes dois es­pec­tá­culos focam duas re­a­li­dades muito con­cretas, e reais, que não têm a «vi­si­bi­li­dade de­vida para que as pes­soas te­nham cons­ci­ência delas e as pro­curem al­terar». O Avan­te­atro pre­tende con­tri­buir pre­ci­sa­mente para lhes dar essa vi­si­bi­li­dade de que tanto ca­recem.

Void, de Clara An­der­matt (con­si­de­rado pelo jornal Ex­presso o me­lhor es­pec­tá­culo de dança de 2009), também se pode in­serir neste bloco de­di­cado à ex­clusão so­cial, so­bre­tudo dos imi­grantes. Re­pre­sen­tando a diás­pora cabo-ver­diana em Por­tugal, Void mis­tura dança, mú­sica e te­atro. Tanto Ma­nuel Men­donça como Pedro Lago des­tacam a pre­sença de uma peça de Clara An­der­matt na Festa, após al­gumas ten­ta­tivas frus­tradas – numa das vezes por boi­cote do Go­verno Re­gi­onal da Ma­deira, que im­pediu a vi­agem das cri­anças de­fi­ci­entes mo­toras da re­gião que par­ti­ci­pavam no es­pec­tá­culo.

Te­atro, mú­sica, dança, ma­ri­o­netas, po­esia... 

Mas todo o te­atro é in­ter­venção e o Avan­te­atro conta este ano com muitos ou­tros es­pec­tá­culos de qua­li­dade. Do Fundão vem a ESTE – Es­tação Te­a­tral com a peça Co­zi­nheiros, ins­pi­rada n' A Co­zinha, de Ar­nold Wesker, es­crita no início da dé­cada de 50 do sé­culo pas­sado. Texto fun­da­mental do te­atro mun­dial, muito uti­li­zado nas es­colas de te­atro pela quan­ti­dade imensa de per­so­na­gens (todos eles com im­por­tância para o de­sen­rolar da trama), a peça põe numa mesma co­zinha de um grande res­tau­rante os ven­ce­dores e os der­ro­tados da II Guerra Mun­dial – como se ali es­ti­vesse todo o mundo do tão dra­má­tico quanto em­pol­gante pós-guerra. Igual­mente no ex­te­rior, O Bando traz Nós Ma­támos o Cão Ti­nhoso.

En­ce­nado por Ar­mando Caldas, O Men­ti­roso é uma peça de Carlo Gol­doni. Es­crita no sé­culo XVII, é in­tem­poral, como afirmou Ma­nuel Men­donça, pois este tipo de per­so­nagem «con­tinua a ha­bitar os nossos tempos e os sí­tios por onde vamos pas­sando».

O cen­te­nário da re­vo­lução re­pu­bli­cana, que nos dias da Festa es­tará a pouco mais de um mês de ser as­si­na­lado, dá o mote para o es­pec­tá­culo de ma­ri­o­netas res pu­blica, a ca­ri­ca­tura ao ser­viço da tris­teza pú­blica, ba­seado nas fi­guras de Ra­fael Bor­dalo Pi­nheiro. O grupo Ma­capi traz ao Avan­te­atro outra peça de ma­ri­o­netas, vi­rada para a in­fância – chama-se Al­fanuí – O Eco dos Montes e conta as aven­turas de um me­nino sem idade. As cri­anças terão, noutro mo­mento, a opor­tu­ni­dade de aprender a fazer as suas pró­prias ma­ri­o­netas a partir de ma­te­riais que es­tavam des­ti­nados a ir para o lixo.

Os mais novos estão ainda no centro das aten­ções da pri­meira pre­sença na Festa da Com­pa­nhia de Dança de Al­mada, com o es­pec­tá­culo Asas e Ca­ra­paças, Hastes e Bar­ba­tanas. Como lem­braram Pedro Lago e Ma­nuel Men­donça, há muito que o pú­blico mais jovem é pri­vi­le­giado nas ma­nhãs do Avan­te­atro, mas será a pri­meira vez da dança. 

De Bar­ce­lona chega o Ca­baret Li­te­rário, do Pro­jecto Margot, com­posto por seis ac­trizes, uma das quais por­tu­guesas. Trata-se de um es­pec­tá­culo de po­esia, pas­sado num café de Lisboa. De Se­vilha vem Alma Fla­menca, es­pec­tá­culo evo­ca­tivo de Fe­de­rico Garcia Lorca, pro­du­zido de pro­pó­sito para a Festa do Avante!. A es­colha do fla­menco para ho­me­na­gear o grande poeta es­pa­nhol – as­sas­si­nado pelos fran­quistas – tem ra­zões his­tó­ricas, ex­plica Ma­nuel Men­donça: Lorca era um as­síduo vi­si­tante dos lo­cais onde se can­tava, to­cava e dan­çava o fla­menco e muito do fla­menco can­tado tem le­tras suas.    

O Avan­te­atro já ha­bi­tuou o seu pú­blico a ter­minar as noites com mú­sica no bar e este ano não será ex­cepção. A ani­mação está ga­ran­tida, a julgar pelos in­tér­pretes, todos eles já co­nhe­cidos do pú­blico do Avan­te­atro. Ma­nuel Men­donça fala em quebra de uma tra­dição – que fazia o fecho de sexta-feira com sons al­ter­na­tivos; dava o de sá­bado ao jazz; e fe­chava no do­mingo com festa grossa. «Este ano é só festa», ga­rante, com O Me­nino é Lindo, Roncos do Diabo e Me­lech Me­chaya.

 

Ro­drigo Fran­cisco, autor de Tu­ning

«Tento mos­trar a di­mensão ar­tís­tica das pes­soas co­muns»

 

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Ro­drigo Fran­cisco ainda não tem 30 anos mas já é um nome co­nhe­cido no pa­no­rama te­a­tral por­tu­guês – e não só. Autor de duas peças, le­vadas à cena pela Com­pa­nhia de Te­atro de Al­mada (da qual é di­rector-ad­junto), o jovem dra­ma­turgo con­fessa-se hon­rado de ver uma cri­ação sua, Tu­ning, a abrir a pro­gra­mação deste ano do Avan­te­atro: «Para mim é uma grande honra, porque co­nheço a Festa do Avante! e o seu sig­ni­fi­cado para a his­tória do País. Trata-se de uma de­mons­tração anual de re­sis­tência e de ca­pa­ci­dade de or­ga­ni­zação. Acho que é no­tável or­ga­nizar-se um evento da­quela di­mensão de uma forma vo­lun­tária, sem quais­quer am­bi­ções de mer­cado, para con­cre­tizar uma von­tade e um pro­jecto.»

 Nos seus textos dra­má­ticos, e pela forma como fala deles, nota-se a mesma crí­tica à so­ci­e­dade ac­tual, pa­tente de forma im­plí­cita – em­bora clara – nestas pa­la­vras sobre a Festa do Avante!. Para o autor, Tu­ning fala da con­tra­dição exis­tente entre uma so­ci­e­dade que pres­siona as pes­soas para a ob­tenção de «su­cesso» e não lhes per­mite, de­pois, a ob­tenção desse mesmo «su­cesso» de forma le­gí­tima.

 O ponto de par­tida desta re­flexão é a his­tória de um jovem que sonha ser jo­gador de fu­tebol, que acre­dita ser a forma mais eficaz de atingir o êxito – para o qual, su­blinha Ro­drigo Fran­cisco, «todos somos in­du­zidos quo­ti­di­a­na­mente». Como a tantos ou­tros, a vida troca as voltas a Pedro (o per­so­nagem da peça), que acaba por se ver obri­gado a ir tra­ba­lhar numa ofi­cina de au­to­mó­veis. É aí que toma con­tacto com os seus co­legas de tra­balho e com os «es­quemas» a que re­correm para obter di­nheiro com fa­ci­li­dade, que uti­lizam de­pois na trans­for­mação de carros, ac­ti­vi­dade co­nhe­cida como tu­ning. «Esta é uma peça que co­loca ques­tões sobre as quais es­pero que as pes­soas re­flictam.»

 A sua es­treia te­a­tral como autor deu-se em 2007, com Quarto Min­guante, onde se abordam as di­fi­cul­dades de co­mu­ni­cação entre ge­ra­ções, ex­pressas na re­lação entre um filho e o seu pai do­ente, na cama de um hos­pital. Também neste texto, é da gente comum que se fala. «Eu es­crevo muito sobre os su­búr­bios, sobre as pes­soas nor­mais, do povo, porque há uma di­mensão hu­mana e ar­tís­tica nessas pes­soas que nem sempre vem ao de cima quando se fala delas.»

Quarto Min­guante  e Tu­ning in­te­grarão um ciclo de quatro peças, onde ainda serão tra­tados os temas da imi­gração e das pri­sões. A ideia, ga­rante o autor, é lançar «um olhar mais com­plexo e cons­ci­ente sobre estas re­a­li­dades».

Como se faz um autor

O per­curso que levou Ro­drigo Fran­cisco ao te­atro é no mí­nimo cu­rioso. A pri­meira vez que en­trou numa sala de es­pec­tá­culos não foi para as­sistir a ne­nhuma peça, mas sim para a montar. Es­tava-se em 1997 (tinha Ro­drigo Fran­cisco 16 anos) e a Com­pa­nhia de Te­atro de Al­mada le­vava à cena a adap­tação de Carlos Porto d' O Car­teiro de Pablo Ne­ruda, de An­tónio Skár­meta. «Nunca mais me con­segui des­ligar do te­atro», con­fessa, acres­cen­tando que acon­tece o mesmo a muita outra gente.

Nos dez anos que vão do início da co­la­bo­ração com a Com­pa­nhia à es­treia da sua pri­meira peça foi um longo ca­minho, du­rante o qual Ro­drigo Fran­cisco apro­veitou para aprender: «O Jo­a­quim Be­nite (di­rector da Com­pa­nhia de Te­atro de Al­mada) re­parou que eu tinha uma ten­dência para a li­te­ra­tura e in­cen­tivou-me a co­meçar a es­crever para te­atro. A partir daí de­sen­vol­vemos um tra­balho de equipa: é um pri­vi­légio para mim ter um en­ce­nador da sua di­mensão a cri­ticar o meu tra­balho e a ajudar-me a me­lhorar o que es­crevo.»

Para o jovem autor, «es­crever para te­atro é muito di­fícil». Ao es­crever, acres­centa, «há sempre a ten­dência para querer dizer muita coisa». Mas no te­atro há ou­tras vozes para além da do es­critor do texto – há a voz do en­ce­nador e a dos ac­tores. Os dois textos que es­creveu re­sultam de uma «res­crita, por vezes quase com­pleta» do texto ini­cial. «A minha forma de es­crever não é fe­char-me em casa e en­tregar um texto aca­bado à Com­pa­nhia. É, sim, a de um texto que se vai cons­truindo, quase até ao dia da es­treia.»



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