No País dos mandriões

Correia da Fonseca

A se­nhora, coi­tada, es­tava ver­da­dei­ra­mente abor­re­cida, de­sa­pon­tada, e foi assim que apa­receu um dia destes nos ecrãs dos nossos te­le­vi­sores. Pe­quena em­pre­sária ou talvez média, pre­ci­sava de pre­en­cher uma vaga lá na sua em­presa, pa­rece que coisa pouca, que não exi­giria grande ba­gagem pro­fis­si­onal, e não con­se­guia o em­pre­gado ou em­pre­gada que pro­cu­rava. E, com­pre­en­si­vel­mente ir­ri­tada, de­sa­ba­fava con­nosco, isto é, com a câ­mara e o mi­cro­fone da re­por­tagem breve. Então não consta que andam por aí de­sem­pre­gados às mãos-cheias em busca de um posto de tra­balho? Onde estão eles que não lhe apa­recem ou, pelo menos, não lhe apa­recem nas con­di­ções ade­quadas? É certo que não se chegou a saber ali quais eram essas con­di­ções, mas é de crer que se­riam sa­tis­fa­tó­rias se não óp­timas e ape­ti­tosas. E das pa­la­vras da boa se­nhora em­pre­sária podia cla­ra­mente en­tender-se a sua ar­rei­gada con­vicção: «O que eles não querem é tra­ba­lhar». Não o disse, nem tanto era aliás pre­ciso, mas podia adi­vi­nhar-se o resto da sua pe­quena es­tória: apren­dera com a te­le­visão, grande mestra neste como em muitos ou­tros as­suntos, que está o País cheio de tra­ba­lha­dores de­so­cu­pados que pre­ferem viver à sombra ben­fa­zeja do sub­sídio de de­sem­prego ou, nou­tros casos, do fa­mi­ge­rado RSI, o Ren­di­mento So­cial de In­serção, a darem-se ao in­có­modo de tra­ba­lhar com todos os in­con­ve­ni­entes que essa opção im­pli­caria: le­vantar cedo, apa­nhar trans­portes, ab­dicar da sesta, coisas assim. Aliás, é pro­vável que a ex­ce­lente e amar­gu­rada se­nhora já ti­vesse ou­vido por mais de uma vez o dr. Paulo Portas falar muito bem e muito de­sem­ba­ra­ça­da­mente contra os man­driões que, não que­rendo tra­ba­lhar, pre­ferem viver à custa dos que tra­ba­lham. E, se não o dr. Portas, algum dos seus dis­cí­pulos, que os há vá­rios nos pro­gramas com que a te­le­visão, mãe­zinha ide­o­ló­gica da ge­ne­ra­li­dade dos por­tu­gueses, di­a­ri­a­mente con­tribui para a nossa for­mação.

O nau­frágio e o ne­gócio

Não me pa­rece que a se­nhora em­pre­sária tenha con­fiado à re­por­tagem as con­di­ções de­certo ge­ne­rosas que ofe­recia a quem acei­tasse o em­prego por ela pro­posto. Se o sa­lário dava para o sus­tento do tra­ba­lhador (e even­tu­al­mente, do seu agre­gado fa­mi­liar) de­pois de de­du­zidos não apenas os des­contos le­gais mas também as des­pesas de trans­porte e o custo de uma re­feição ainda que mí­nima a meio do dia de tra­balho. O que se­gu­ra­mente sei é que a re­por­tagem se dis­pensou da ta­refa acres­cida de es­gra­vatar um pou­co­chinho à pro­cura dos mo­tivos que levam tra­ba­lha­dores no de­sem­prego a re­jei­tarem postos de tra­balho que lhes são pro­postos. É claro que há sempre a ex­pli­cação su­mária e sempre bem aco­lhida por certos sec­tores da po­pu­lação da pre­fe­rência pela oci­o­si­dade sub­si­diada pelo Es­tado: «O que eles não querem é tra­ba­lhar!». Mas quem lida com uma grande massa de tra­ba­lha­dores ati­rados para o de­sem­prego co­nhece ou­tras ra­zões. Sabe que o de­sem­prego im­plica não poucas vezes o li­miar de uma si­tu­ação de mi­séria con­subs­tan­ciada em di­versos fac­tores: risco de perda da ha­bi­tação, ne­ces­si­dade de re­tirar cri­anças dos lu­gares de en­sino que fre­quentam, im­pos­si­bi­li­dade de con­ti­nuar a apoiar fi­nan­cei­ra­mente fi­lhos ou as­cen­dentes em si­tu­ação pre­cária. Por exemplo. E sabe, e com­pre­ende, que a busca de um novo em­prego ra­dica na es­pe­rança, ainda que frágil, de que com ele será pos­sível manter pelo menos al­guns desses en­cargos, isto é, a ex­pec­ta­tiva de que com ele possam ser salvos do nau­frágio al­guns des­troços. Para isso, é claro, não serve qual­quer posto de tra­balho re­mu­ne­rado es­cas­sa­mente e si­tuado a dis­tân­cias que im­pli­quem pe­sados custos de des­lo­cação. Ou, por ou­tras pa­la­vras, não serve aceitar uma si­tu­ação de in­ten­siva ex­plo­ração sa­la­rial só porque sobre o tra­ba­lhador al­guém fez de­sabar a ca­tás­trofe do de­sem­prego, por muito que uma in­con­di­ci­onal acei­tação de todo e qual­quer posto de tra­balho a troco de qual­quer re­mu­ne­ração (sem falar de ou­tras con­di­ções e cir­cuns­tân­cias) possa ser um bom ne­gócio para o em­pre­gador. Pa­rece que al­guém devia ex­plicar à ex­ce­lente se­nhora em­pre­sária estas e ou­tras ra­zões que talvez possam re­sumir-se numa fór­mula mais geral: o de­sem­prego não pode ser um ins­tru­mento de re­dução do tra­ba­lhador a uma tal con­dição de de­pen­dência que, no li­mite, deva sa­tis­fazer-se com o facto de tra­ba­lhar em troco da mera so­bre­vi­vência ali­mentar. Como os an­tigos es­cravos. De me­mória por­ven­tura sau­dosa para algum pa­tro­nato prag­má­tico e sem com­plexos.



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