Sector automóvel em Portugal

A exploração como motor

Margarida Botelho

O sector au­to­móvel tem grande im­por­tância no nosso País pelo peso no em­prego in­dus­trial, com mais de 30 mil tra­ba­lha­dores, mas também pelo peso no PIB e nas ex­por­ta­ções. É um sector muito de­pen­dente da es­tra­tégia das mul­ti­na­ci­o­nais, par­ti­cu­lar­mente no sector da mon­tagem, em que a Auto-Eu­ropa re­pre­senta 2/​3 da pro­dução de veí­culos de pas­sa­geiros.

No que diz res­peito aos di­reitos dos tra­ba­lha­dores, o grande ca­pital tem como alvos prin­ci­pais os sa­lá­rios, a re­gu­lação do tempo de tra­balho, a pre­ca­ri­e­dade, os ritmos e as con­di­ções de tra­balho. É certo que são alvos sempre e onde o ca­pital e o tra­balho se con­frontam. Nestas pá­ginas abor­da­remos al­guns as­pectos desta ofen­siva no que diz res­peito ao sector au­to­móvel no nosso País.

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O re­bentar da crise em 2008 levou a que as vendas de au­to­mó­veis em todo o mundo atin­gissem o nível mais baixo dos úl­timos 15 anos, com que­bras mé­dias de 20%, facto que se prende com a di­mi­nuição do poder de compra, quer por via do de­sem­prego e do corte nos sa­lá­rios, quer pelas res­tri­ções im­postas ao cré­dito.

Para os tra­ba­lha­dores do sector, o ano do 2009 ficou mar­cado por in­sol­vên­cias, des­pe­di­mentos, con­ge­la­mento de sa­lá­rios, re­curso ao lay-off e en­cer­ra­mento de em­presas.

Uma si­tu­ação em fla­grante con­traste com os lu­cros sig­ni­fi­ca­tivos al­can­çados pelas em­presas, se bem que nal­guns sec­tores abaixo dos ní­veis a que es­tavam ha­bi­tu­ados. 23 em­presas da área dos com­po­nentes au­to­mó­veis no nosso País ti­veram em 2009 cerca de 200 mi­lhões de euros de lucro lí­quido, muito su­pe­rior a anos an­te­ri­ores.

A crise foi – e con­tinua a ser – o ar­gu­mento in­vo­cado para fazer baixar sa­lá­rios e di­reitos e para exigir apoios do Es­tado. Em muitos casos, os apoios e in­cen­tivos do Es­tado servem exac­ta­mente para fazer baixar os sa­lá­rios. Em Por­tugal, o me­lhor exemplo disso mesmo foi o re­curso ao Plano de Apoio ao Sector Au­to­móvel (PASA).

Lan­çado em De­zembro de 2008 pelo Go­verno PS, o PASA con­sistia num vasto con­junto de me­didas para quatro eixos fun­da­men­tais: o «es­tí­mulo ao em­prego e à qua­li­fi­cação», o apoio às «in­su­fi­ci­ên­cias fi­nan­ceiras», o «ajus­ta­mento do perfil in­dus­trial e tec­no­ló­gico», o in­cen­tivo à pro­cura. Destes, aquele que foi re­al­mente apli­cado foi o que diz res­peito aos tra­ba­lha­dores.

 

O PASA foi co­ber­tura para impor o lay-off a mi­lhares de tra­ba­lha­dores du­rante o ano de 2009, em muitos casos pas­sando para a Se­gu­rança So­cial parte dos custos sa­la­riais du­rante meses. O sector au­to­móvel foi o que mais re­correu ao lay-off, com si­tu­a­ções em que a Se­gu­rança So­cial foi ver­da­dei­ra­mente sa­queada, sem que hou­vesse fis­ca­li­zação.

Foi o caso da Re­nault /Cacia, que co­locou 120 tra­ba­lha­dores por dia em for­mação, mas que con­se­guiu manter a pro­dução sem grandes os­ci­la­ções porque a maior parte desses 120 eram che­fias e pes­soal ad­mi­nis­tra­tivo. Em­presas que im­pu­seram o lay-off estão hoje com la­bo­ração con­tínua – como a Im­pormol, na Azam­buja – ou a ul­tra­passar picos de pro­dução – como a Schaf­flaer, nas Caldas da Rainha – mos­trando que se pro­curou fazer pagar a crise ex­clu­si­va­mente aos tra­ba­lha­dores.

A pressão para baixar sa­lá­rios, quer através do re­curso ao lay-off, quer à con­tra­tação de tra­ba­lha­dores com vín­culos de tra­balho pre­cário subs­ti­tuindo tra­ba­lha­dores efec­tivos, quer pro­cu­rando fazer baixar o pa­ga­mento do tra­balho ex­tra­or­di­nário, é uma re­a­li­dade, apesar de o peso dos sa­lá­rios não ser muito sig­ni­fi­ca­tivo na es­tru­tura de custos do sector au­to­móvel. A parte sa­la­rial na ri­queza pro­du­zida é li­mi­tada, bem abaixo da média da res­tante in­dús­tria trans­for­ma­dora. Na Auto-Eu­ropa, por exemplo, os custos com pes­soal não ul­tra­passam os 7,8%. A pro­du­ti­vi­dade no sector au­to­móvel cresceu em 2008 para 490 mil euros por tra­ba­lhador no nosso País.

 

O ataque à re­gu­lação do tempo de tra­balho

 

Em 2010, são muitas as em­presas do sector au­to­móvel que estão a au­mentar a pro­dução e os ritmos de pro­dução, man­tendo a pressão para baixar sa­lá­rios, au­mentar o tempo de tra­balho, impor bancos de horas e adap­ta­bi­li­dade.

A chan­tagem é em muitas em­presas co­lo­cada de forma crua: ou se deixa de pagar horas ex­tra­or­di­ná­rias (por exemplo ao sá­bado), ou se re­corre ao lay-off, ou a fá­brica fecha. A chan­tagem até é fácil de des­mas­carar: é pre­ciso pro­duzir mais (e por­tanto há ne­ces­si­dade de tra­ba­lhar ao sá­bado) ou é pre­ciso pro­duzir menos (e isso «jus­ti­fi­caria» ao lay-off)?!

A ver­dade é que, nos casos em que o pa­tro­nato con­se­guiu impor os seus pro­pó­sitos, a ex­plo­ração atinge con­tornos mais pró­prios do sé­culo XIX do que do sé­culo XXI. Se­gundo a Co­missão de Tra­ba­lha­dores da PSA Peu­geot Citroën, em Man­gualde – onde a an­te­rior mai­oria da CT as­sinou um «acordo» de com­pleta venda de di­reitos –, a ad­mi­nis­tração aplica um banco de horas que per­mite o tra­balho todos os sá­bados de manhã, o pro­lon­ga­mento do ho­rário das 23 às 24h e das 6h30 às 7h, sem qual­quer tipo de re­mu­ne­ração, sendo os tra­ba­lha­dores avi­sados de um mo­mento para o outro que são ne­ces­sá­rios na fá­brica dali a duas horas – o tempo má­ximo de que dis­põem para se apre­sentar. Todas as faltas são con­si­de­radas in­jus­ti­fi­cadas, ex­cepto se a Se­gu­rança So­cial for en­vol­vida di­rec­ta­mente (casos da baixa ou da li­cença de ma­ter­ni­dade ou pa­ter­ni­dade), o que ex­clui até – ima­gine-se! – casos de morte de fa­mi­li­ares. Com triste ironia, um tra­ba­lhador dizia: «só falta a pul­seira elec­tró­nica». Tudo isto pe­rante o si­lêncio da Au­to­ri­dade para as Con­di­ções de Tra­balho, que desde Fe­ve­reiro está a «apre­ciar» a va­li­dade deste «acordo».

É um exemplo ex­tremo, mas que mostra que só a luta e a re­sis­tência dos tra­ba­lha­dores pode pôr travão à ex­plo­ração de­sen­freada. O ob­jec­tivo do pa­tro­nato de pôr em causa a con­tra­tação co­lec­tiva visa criar con­di­ções para impor a lei do mais forte nas em­presas. No mesmo sen­tido vai a in­tenção, sempre re­no­vada, de impor no plano da União Eu­ro­peia a di­rec­tiva do tempo de tra­balho.

 

Pre­ca­ri­e­dade – os tra­ba­lha­dores como peças des­car­tá­veis

 

O re­curso à pre­ca­ri­e­dade faz parte do ob­jec­tivo de baixar os custos com o tra­balho, mas igual­mente de li­mitar a ca­pa­ci­dade rei­vin­di­ca­tiva dos tra­ba­lha­dores.

De acordo com dados di­vul­gados pelos ór­gãos re­pre­sen­ta­tivos dos tra­ba­lha­dores, re­fira-se os casos da Delphi, no Seixal, com 100 tra­ba­lha­dores de em­presas de tra­balho tem­po­rário num total de 370; da Fau­recia, em S. João da Ma­deira, em que entre os cerca de 2000 tra­ba­lha­dores estão 289 tem­po­rá­rios, a com­pletar dois anos no mesmo posto de tra­balho, re­ce­bendo o sa­lário mí­nimo na­ci­onal; da Vis­teon, em Pal­mela, em que dos cerca de 1300 tra­ba­lha­dores 200 são tem­po­rá­rios; da PSA, com 100 tra­ba­lha­dores tem­po­rá­rios e 800 efec­tivos; ou os casos, já em jul­ga­mento, de tra­ba­lha­dores na Re­nault que tra­ba­lhavam ci­cli­ca­mente sete meses e iam para o de­sem­prego três, para vol­tarem a ser con­tra­tados.

A Auto-Eu­ropa criou a sua pró­pria em­presa de tra­balho tem­po­rário – a Auto-Vi­sion Pe­ople – para ceder mão-de-obra à casa mãe. Tem hoje já mais de 500 tra­ba­lha­dores.

 

Ritmos e con­di­ções de tra­balho de­su­manos

 

Na Re­nault, em 2009, 950 tra­ba­lha­dores e al­guns con­tra­tados pro­du­ziam 1518 caixas de ve­lo­ci­dade por dia. Em Junho de 2010, cerca de 1000 tra­ba­lha­dores estão a pro­duzir 2218 dessas caixas por dia.

Este é um exemplo em­ble­má­tico do que se passa nou­tras em­presas: uma enorme pressão para pro­duzir mais com menos tra­ba­lha­dores, com ritmos de tra­balho ele­va­dís­simos.

O sector au­to­móvel, e par­ti­cu­lar­mente o das ca­bla­gens e in­dús­trias eléc­tricas, tem sido pró­digo em do­enças pro­fis­si­o­nais, com des­taque para as ten­di­nites, que têm lan­çado muitos mi­lhares de tra­ba­lha­dores, par­ti­cu­lar­mente mu­lheres, para gra­vís­simas si­tu­a­ções de saúde e mesmo in­ca­pa­ci­dade para o tra­balho.

Num sector em que, de acordo com o Sin­di­cato, são mais os dias per­didos em aci­dentes de tra­balho e do­enças pro­fis­si­o­nais do que em li­cenças de ma­ter­ni­dade, que podem ir até seis meses, a pre­venção de­veria ser uma pri­o­ri­dade e uma im­po­sição legal. Em sen­tido com­ple­ta­mente oposto ao ne­ces­sário, a ale­gada re­dução de custos na Vis­teon levou a que dei­xasse de haver na em­presa con­sultas de or­to­pedia, tra­ta­mentos de fi­si­o­te­rapia e psi­co­logia.

 

As des­lo­ca­li­za­ções como ameaça per­ma­nente

 

Em 10 anos, em apenas três grupos de ca­bla­gens ins­ta­lados no Norte do país, cerca de 15 mil tra­ba­lha­dores per­deram os seus postos de tra­balho na sequência de des­lo­ca­li­za­ções de fá­bricas dos grupos Ya­saki Sal­tano, Lear e Leoni – que tem pre­visto o fim da pro­dução em Viana do Cas­telo para 31 de Julho. Idên­tica si­tu­ação vi­veram e vivem os tra­ba­lha­dores das fá­bricas da Delphi em Ponte Sôr e na Guarda – cujo en­cer­ra­mento foi anun­ciado esta se­mana. Apoi­adas prin­ci­pes­ca­mente pelo Es­tado por­tu­guês e pela União Eu­ro­peia, estas e ou­tras em­presas deixam atrás de si um rasto de des­truição.

A chan­tagem per­ma­nente sobre os tra­ba­lha­dores («se não querem estas con­di­ções, a pro­dução pode ser en­tregue a outro país onde a mão-de-obra é mais ba­rata») é ina­cei­tável. Não é o preço do tra­balho o factor de­ci­sivo quando de­cidem des­lo­ca­lizar – ou não seria a Ale­manha o maior em­pre­gador deste sector no plano eu­ropeu.

 

O ca­minho é a luta

 

Pro­curar impor um tal clima de medo aos tra­ba­lha­dores que os im­pe­disse de se or­ga­ni­zarem e lutar é um velho ob­jec­tivo do ca­pital. As li­mi­ta­ções à li­ber­dade sin­dical, os des­pe­di­mentos se­lec­tivos, a dis­cri­mi­nação sa­la­rial, a pro­moção de es­tru­turas pa­ra­lelas de tra­ba­lha­dores, são ins­tru­mentos co­nhe­cidos.

Os tra­ba­lha­dores têm sa­bido re­sistir, exercer os seus di­reitos e lutar. Já du­rante este ano, es­ti­veram em luta os sec­tores eléc­trico, da me­ta­lurgia e da quí­mica, além de uma sig­ni­fi­ca­tiva par­ti­ci­pação nas ma­ni­fes­ta­ções de 29 de Maio e 8 de Julho. A luta dos tra­ba­lha­dores impôs au­mentos sa­la­riais sig­ni­fi­ca­tivos, como na Dura, na We­basto ou na Sch­nelcke. Os tra­ba­lha­dores da Vis­teon im­pu­seram a re­dução do lay-off para seis dias, quando a em­presa pro­punha três meses. A de­núncia da ile­ga­li­dade do banco de horas na Delphi no Seixal levou a que a em­presa fosse con­de­nada a uma multa de 100 mil euros.

 

Outro rumo, nova po­lí­tica!

 

É ne­ces­sária uma nova po­lí­tica vi­rada para a de­fesa do apa­relho pro­du­tivo na­ci­onal, a de­fesa dos postos de tra­balho e do em­prego com di­reitos, o que im­plica:

- a de­fesa dos di­reitos dos tra­ba­lha­dores, com a ele­vação dos sa­lá­rios, o com­bate ao tra­balho pre­cário e uma ade­quada pre­venção no âm­bito da hi­giene e se­gu­rança;

- um pro­grama de in­dus­tri­a­li­zação do país, que aposte na pro­dução na­ci­onal em subs­ti­tuição das im­por­ta­ções, e que apro­veite e de­sen­volva os sec­tores ex­por­ta­dores;

- o au­mento do grau de in­cor­po­ração na­ci­onal, no­me­a­da­mente ao nível da in­ves­ti­gação e de­sen­vol­vi­mento (1);

- uma firme ati­tude por parte do Go­verno, que pro­teja os in­te­resses na­ci­o­nais na con­tra­tu­a­li­zação que é feita com as mul­ti­na­ci­o­nais, no­me­a­da­mente in­te­grando o in­ves­ti­mento es­tran­geiro numa es­tra­tégia de de­sen­vol­vi­mento na­ci­onal, es­ta­be­le­cendo cri­té­rios para a fi­xação de em­presas e de­fi­nindo pe­na­li­za­ções em caso de des­lo­ca­li­zação;

- uma aposta em equi­pa­mentos, in­ves­ti­gação e de­sen­vol­vi­mento, na qua­li­fi­cação pro­fis­si­onal e apro­vei­ta­mento das eco­no­mias de es­cala, de forma a elevar a pro­du­ti­vi­dade.

 

Nota final: Muitas das in­for­ma­ções re­fe­ridas neste ar­tigo foram re­co­lhidas na Au­dição Pú­blica sobre o sector au­to­móvel que o PCP re­a­lizou no dia 29 de Junho. Vi­rada para a si­tu­ação dos tra­ba­lha­dores, com a par­ti­ci­pação de eleitos na As­sem­bleia da Re­pú­blica e no Par­la­mento Eu­ropeu, a Au­dição contou com a pre­sença de cerca de 40 di­ri­gentes, de­le­gados e ac­ti­vistas sin­di­cais e de Co­mis­sões de Tra­ba­lha­dores, di­rec­ta­mente li­gados a mais de 12 em­presas.

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(1) Re­fira-se a este pro­pó­sito que, no caso da Auto-Eu­ropa, apenas 10% dos for­ne­ce­dores são por­tu­gueses.



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