Pequim, outra vez

Francisco Mota

Para a Fan Shan, a Maria João e o Toi, que me cui­daram e apa­pa­ri­caram –  Pe­quim

 

Ali es­tava eu, sen­tado junto a uma ampla ja­nela dum res­tau­rante da zona das em­bai­xadas. Não me sentia como o José Régio quando es­crevia «…em Por­ta­legre dizia/ ci­dade onde então vivia/ coisas que terei pudor/ de contar seja a quem for…»,  mas um sen­ti­mento es­tranho de so­lidão e lon­jura tinha to­mado conta de mim.  So­zinho pen­sava que cada vez que vol­tava  à China havia coisas novas e di­fe­rentes.  Desta vez notei a exis­tência de muitos novos res­tau­rantes e su­per­mer­cados, que até ti­nham queijos de vá­rios países, quando os chi­neses são to­tal­mente alér­gicos ao queijo e aos lác­teos.  Na te­le­visão e nos jor­nais chi­neses em in­glês fa­lava-se di­a­ri­a­mente das greves dos tra­ba­lha­dores de vá­rias fá­bricas de au­to­mó­veis ja­po­nesas, de fá­bricas gi­gan­tescas de com­po­nentes elec­tró­nicos, pro­pri­e­dade de Taiwan. Mais de 100 000 tra­ba­lha­dores em greve, du­rante vá­rias se­manas, que fi­nal­mente con­se­guiram au­mentos de cerca de 30% e ou­tras me­lho­rias nas con­di­ções de tra­balho. Apa­re­ciam na te­le­visão es­tatal, quer no canal em in­glês, quer nos ca­nais em chinês. O go­verno e o seu pri­meiro-mi­nistro saíam a de­fender os tra­ba­lha­dores. Os sin­di­catos clás­sicos eram ques­ti­o­nados e dis­cutia-se como de­viam ser «num país que quer cons­truir o so­ci­a­lismo uti­li­zando a eco­nomia de mer­cado». Tudo isto sem po­lícia, uti­li­zando a tran­quila lin­guagem tí­pica dos chi­neses.

So­zinho, sem pressa, via os cli­entes en­trar, todos ves­tidos pelo pa­drão-tipo «fun­ci­o­nário de em­bai­xada». Via aquela gente em mesas de 2, 4, 7 ou 8 pes­soas, todas a falar in­glês e, logo me vem a ca­beça uma dú­vida muito velha: qual será o tipo da CIA e qual será o tipo da MOSSAD?  Agora com a crise ad­miti que, como os EUA e Is­rael são tão amigos, se ca­lhar têm o mesmo espia para os dois. É pre­ciso di­mi­nuir o gasto pú­blico, não é como eles dizem todos?

Um em­pre­gado apro­ximou-se e deu-me um pe­queno menu, onde se podia es­co­lher uma de três en­tradas e um de três pratos prin­ci­pais. Per­cebi que es­tava num res­tau­rante de co­mida fran­cesa. Também davam um re­fri­ge­rante ou um copo de vinho ar­gen­tino, além de café e uns bo­li­nhos. Preço, cerca de 12 euros. Não há gor­jetas na China.

Voltei a exa­minar as mesas quase todas cheias de di­plo­má­ticos e a pensar que aquela gente que ganha muito, muito bem, vinha àquele res­tau­rante pelo preço da gor­jeta que te­riam que deixar nos seus  países.

Eu pedi umas fa­vi­nhas des­cas­cadas de todas as peles, le­ve­mente sal­te­adas em azeite com um toque de to­milho fresco. Lindo e muito bom. De­pois um peixe branco de carne firme, sem es­pi­nhas, que não con­segui  iden­ti­ficar, sobre uma cama de um ri­sotto feito com al­guns ve­ge­tais mi­nús­culos e um pouco de vinho tinto, além da con­sa­bida man­teiga.  Re­con­for­tante peixe a quem nem o ri­sotto in­co­mo­dava.  Fui be­be­ri­cando o branco ar­gen­tino que era bas­tante be­bível, sem de­feitos e com as qua­li­dades justas para estar ali.

En­quanto comia re­parei que a mú­sica era in­te­res­sante e re­co­nhe­cida por mim.  Pri­meiro foi Bras­sens, de­pois uma «morna» de Cabo Verde, Az­na­vour – de quem nunca fui ad­mi­rador, menos na­quele dia –, o « Dans le Port d’Ams­terdam» do enorme Jac­ques Brel. Che­gados aqui disse para mim em voz alta «se põem o Serge Re­gi­anni de­sato a chorar e vai ser com­pli­cado de ex­plicar. Não pu­seram. Não chorei e vi os di­plo­má­ticos sairem des­fi­lando como uma resma de fo­to­có­pias da mesma pá­gina.

Fi­quei a ver as pes­soas pas­sarem na rua, cada vez mais bem ves­tidas e mais à «moda». Via-se que havia mais di­nheiro e que toda a gente tra­ba­lhava. Era uma imagem muito di­fe­rente da que tive há doze anos quando es­tive na China pela pri­meira vez. Fi­quei con­tente por eles. Não ouvi nunca a pa­lavra «crise».

Quando já era o úl­timo, saí re­con­for­tado pela co­mida que me ti­nham dado por doze euros.  Não con­segui des­co­brir a razão do meu des­con­forto emo­ci­onal do início do dia. E também não con­segui des­co­brir quem seria o espia.



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