Ilusões e mentiras do «combate à pobreza»

Jorge Messias

A Igreja Ca­tó­lica montou no plano so­cial uma au­tên­tica má­quina de­vo­ra­dora.

Para jus­ti­ficar este re­paro basta fo­lhear as pá­ginas da sua his­tória mais re­cente. Porque um sé­culo, no correr dos tempos – e diga-se o que se disser – quase que apenas faz mudar nas ins­ti­tui­ções apenas as apa­rên­cias.

Em plena «Re­vo­lução In­dus­trial», o Va­ti­cano per­ma­necia mudo pe­rante os crimes pra­ti­cados pelo pa­tro­nato. Os sen­ti­mentos de re­volta alas­travam entre a mul­tidão dos ex­plo­rados. O exér­cito dos de­sem­pre­gados en­gros­sava a olhos vistos. Os ricos vi­viam uma vida faus­tosa e tro­çavam dos opri­midos. Estes, ma­ni­fes­tavam-se es­pon­ta­ne­a­mente mas as re­voltas dos po­bres ca­re­ciam de uma or­ga­ni­zação re­vo­lu­ci­o­nária que sis­te­ma­ti­zasse os seus actos de re­volta e fi­zessem vergar o poder dos ti­ranos.

Nestes qua­dros, surgiu em 1847 o Ma­ni­festo Co­mu­nista. O alarme soou no mundo ca­pi­ta­lista. Go­vernos ultra-re­ac­ci­o­ná­rios e Va­ti­cano sen­tiram-se ul­tra­jados. Os pig­meus ou­savam de­sa­fiar os co­lossos. De ime­diato, su­biram de tom e de força as lutas entre classes. Mas se o pa­tro­nato tinha com­por­ta­mentos des­vai­rados, não sabia aprender com a His­tória e mos­trava não dispor de pro­postas al­ter­na­tivas. Pelo con­trário, a Igreja con­ser­vava a ca­beça fria.

Em 1891, quase cin­quenta anos pas­sados sobre o Ma­ni­festo, o Papa Leão XIII di­vulgou a  en­cí­clica Rerum No­varum, a pri­meira carta pon­ti­fícia cen­trada na cha­mada «questão ope­rária». De­pois, ao longo dos anos mas em su­cessão con­tínua, foram pu­bli­cados de­zenas de do­cu­mentos apos­tó­licos ru­bri­cados pelos papas que su­ce­deram a Leão XIII. Todos eles mu­davam a gra­má­tica ou a forma de co­mu­nicar mas man­ti­nham os mesmos ob­jec­tivos e um mesmo nú­cleo cen­tral te­o­ló­gico com ca­rácter de dogma. Ca­pi­ta­lismo bom ou ca­pi­ta­lismo mau, mas sempre ca­pi­ta­lismo.       

Em 1981, todos estes do­cu­mentos foram com­pi­lados e pu­bli­cados como con­junto or­gâ­nico cen­tral dos en­si­na­mentos da Igreja sobre os pro­blemas so­ciais - a «Dou­trina So­cial da Igreja». Dali por di­ante, o ca­to­li­cismo fi­cava do­tado de uma única carta de prin­cí­pios  no vas­tís­simo campo pas­toral.

Os avanços teó­ricos neste uni­verso so­cial de que de­pendem po­bres, ve­lhos, jo­vens, de­fi­ci­entes, emi­grantes, mi­no­rias mar­gi­na­li­zadas, pe­quenos e mé­dios pro­du­tores, etc., te­riam de ser acom­pa­nhados, evi­den­te­mente, por al­te­ra­ções pro­fundas na forma como a Igreja in­ter­vi­esse no ter­reno. Assim, em poucos de­cé­nios tudo se trans­formou. As Mi­se­ri­cór­dias me­di­e­vais ca­ducas mo­der­ni­zaram-se, à imagem das so­ci­e­dades ne­o­li­be­rais fun­diram-se ou for­maram redes, es­pe­ci­a­li­zaram-se e apro­xi­maram-se dos po­deres laicos cujos apa­re­lhos aca­baram por con­trolar. Criou-se em todo o mundo mi­lhares e mi­lhares de ONG's, de fun­da­ções e de ins­ti­tui­ções ca­tó­licas fi­nan­ceiras, a pre­texto  da ex­pansão da Fé, da So­li­da­ri­e­dade entre os ho­mens, da uni­dade da Fa­mília, do com­bate à po­breza e da Ca­ri­dade cristã. Mais pa­recia que o Va­ti­cano con­se­guira con­ci­liar o con­ci­liável com o in­con­ci­liável: a ca­ri­dade cristã que prega o amor ao pró­ximo e a sede ines­go­tável de lucro que ca­rac­te­riza o ca­pi­ta­lismo.

A partir de aí, rios de di­nheiro na forma de in­cen­tivos e de sub­sí­dios não ces­saram de correr dos co­fres pú­blicos para as or­ga­ni­za­ções não lu­cra­tivas ca­tó­licas. Neste as­pecto, o Va­ti­cano soube «dar a volta» a ques­tões graves que se ar­ras­tavam no in­te­rior da Igreja desde as na­ci­o­na­li­za­ções de bens das Or­dens Re­li­gi­osas, na pri­meira fase do li­be­ra­lismo. Lu­cros ma­te­riais a que se so­maram ou­tros em con­tra­par­tidas, menos vi­sí­veis mas de não menor im­por­tância. Sempre ao lado do poder po­lí­tico e ca­pi­ta­lista das grandes for­tunas, a Igreja ga­nhava, por isso mesmo, cres­cente par­ti­ci­pação nas de­ci­sões de fundo do ca­pi­ta­lismo ori­en­tado para a Glo­ba­li­zação. Si­mul­ta­ne­a­mente, cha­mava a si o re­co­nhe­ci­mento e a sim­patia dos pe­quenos mas bem si­tu­ados seg­mentos da po­pu­lação aos quais a acção ca­ri­ta­tiva aju­dava a so­bre­viver. Uma es­tra­tégia que aliás vem de longe, dos tempos da velha Acção Ca­tó­lica, mas so­freu na sua for­mu­lação pro­fundas mu­danças, à es­cala das for­ma­ções em­pre­sa­riais da so­ci­e­dade global. Se an­ti­ga­mente a ca­ri­dade era as­sunto pes­soal, prin­cípio ex­presso de cada ins­ti­tuição ou po­sição es­pon­tânea das co­mu­ni­dades, todo esse uni­verso se hi­e­rar­quizou, or­ga­nizou se­gundo um só pa­drão e se sa­grou como prin­cípio te­o­ló­gico. A ca­ri­dade pre­para os fun­da­mentos da nova era cristã que por aí vem. Por isso, de­ci­sões das ONG's, IPSS ou Fun­da­ções, tudo passa pelas es­tru­turas in­ter­mé­dias, pelas con­fe­rên­cias epis­co­pais na­ci­o­nais ou pelos di­cas­té­rios (mi­nis­té­rios) pon­ti­fí­cios. Só para exem­pli­ficar o que tudo isto sig­ni­fica do ponto de vista da cen­tra­li­zação do poder ecle­siás­tico: su­po­nhamos que uma certa de­cisão de even­tual pro­jecção no plano so­cial é to­mada pela Mesa de uma Mi­se­ri­córdia. Antes que «suba», ela será se­gu­ra­mente ana­li­sada pelos ór­gãos com­pe­tentes da União das Mi­se­ri­cór­dias, das Con­fe­de­ra­ções da Acção So­cial, do Se­cre­ta­riado da Acção So­cial e Ca­ri­ta­tiva, da Co­missão Jus­tiça e Paz, das Co­mis­sões Pon­ti­fí­cias, da Cúria Ro­mana etc., todos mem­bros da Con­fe­rência Epis­copal Por­tu­guesa. Se an­ti­ga­mente a mul­ti­pli­ci­dade dos cen­tros de de­cisão ins­ta­lavam a de­mora e a con­fusão, a ac­tual in­for­má­tica torna tudo mais fácil e efi­ci­ente através do cru­za­mento de dados. O Va­ti­cano não re­cebe li­ções de nin­guém em ma­té­rias de so­ci­o­logia po­lí­tica. Es­cuta todas as su­ges­tões mas é o Papa quem de­cide, exac­ta­mente como nos tempos me­di­e­vais.



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