A traços gerais e muito incompletos pode traçar-se o perfil de uma Igreja católica cujo projecto central cresceu à custa de uma troca permanente entre os valores da sua doutrina social e a economia social de mercado exigida pelos interesses do capitalismo. Se revisitarmos o passado recente, iremos constatar como uma constante as cumplicidades entre dois dos grandes parceiros que construíram o Mercado Comum e o coroaram mais tarde como União Europeia – o Capital e a Igreja. Passeio penoso mas de extrema utilidade. Ao longo do percurso veríamos, se tentássemos a aventura, que os mitos europeus e capitalistas se revestem de roupagens litúrgicas; que o discurso dos seus responsáveis vem sempre na linha característica dos grandes pregadores de púlpito; que a poderosa «reviravolta doirada» dos anos 80 colocou no cimo da nuvem não só a banca e os banqueiros mas também o Vaticano, com as suas formações financeiras, as suas instituições caritativas, as suas escolas, os seus hospitais, as suas organizações laborais e patronais. Todas estas áreas foram crescendo com poderes eclesiais redefinidos e jamais sonhados. Fundamentalmente, a nível universal, a Igreja abriu então verdadeiras auto-estradas de acesso ao poder e às formas de destruição do Estado laico, democrático e social. Usou, para tanto, de todas as armas disponíveis, desde a diplomacia à compra silenciosa das consciências. Nesta gigantesca «revolução de veludo», desempenharam papel determinante as operações realizadas à sombra das concordatas firmadas com o capitalismo em vários estados europeus. Quando, enfim, se estabeleceu a União Europeia, o que era particular nas concordatas transformou-se em lei geral e em em norma legal de cumprimento obrigatório, mesmo nos estados comunitários que anteriormente se tinham negado a negociar com a Santa Sé.
Como é evidente, todos estes mega-negócios entre os poderes laicos e capitalistas e o Vaticano foram protegidos por um manto do mais completo sigilo. Mas a prática veio revelar essas relações íntimas entre a cruz e o cifrão : os políticos e os banqueiros discursam como que a pregar os mitos proclamados pelos antigos profetas ; os escândalos financeiros continuaram a estoirar por toda a parte, perante a passividade dos papas, dos bispos e cardeais. Foi reforçada a impunidade implicitamente reconhecida a políticos e ao clero. A tal ponto que é já facto consumado admitir-se ter-se instalado entre os que podem e mandam o crime organizado e aceitar-se que contra isso nada se pode fazer a não ser «resignarmo-nos e perdoar».
Esta filosofia permissiva fez caminho com os «valores cristãos e concordatários» e permitiu que os grandes crimes sociais ficassem por punir. Neste sentido, há-que reconhecer que o pacto europeu entre a Igreja e o capital teve êxito assinalável. Que dimensão terá a massa financeira entretanto desviada dos orçamentos públicos para a assistência confessional sócio-caritativa privada? Que aplicações foram dadas a esse dinheiro ? Que histórias macabras se ocultam atrás dos offshores , dos roubos da banca ou das falências fraudulentas ? Que vem a ser, afinal, essa rábula litúrgica que é a «conversão dos ricos ao combate à pobreza»? Não há sistemas efectivos de controlo fiscal sobre esses valores multimilionários, tudo se anuncia ir ser investigado e nada se investiga. Que respeito merecem à Comissão Europeia e ao Vaticano as normas constitucionais expressas pelo voto democrático das populações que sofrem os efeitos reais de todos esses crimes e vêem alargado, dia após dia, o fosso catastrófico que separa ricos e pobres?
Jogar «às escondidas»...
O alto clero gosta de reeditar a seu favor a velha história do metafísico distraído que um dia, mergulhado nas suas reflexões não reparou no poço que estava no seu caminho e nele acabou por cair. Os cardeais revelam comportamento semelhante quando se trata de jogar com os seus silêncios perante os crimes cometidos pelos ricos sobre os pobres. Sabem e não sabem. Estão presentes e não estão, segundo o que mais lhes convenha. A Igreja condena a «pobreza» imposta pelos ricos mas é à custa dela que vai resolvendo os seus próprios problemas e materialmente prospera. Na Europa do dinheiro, bem instalada na sua «crise financeira», abundam os exemplos destas cumplicidades do «bate e foge».
Segundo as estatísticas oficiais do Estado – torcidas e retorcidas pelos ministros sem escrúpulos de Sócrates – existem em Portugal 700 mil desempregados, número em crescimento mas que, mesmo assim, fica muito aquém da realidade. O desemprego é a fonte principal da miséria entre os pobres. E é, por outro lado, um dos factores principais do aumento dos lucros entre os ricos. Atrás de cada desempregado perfila-se uma família. Em toda a sua crueza, a leitura das estatísticas do desemprego tem de ter em conta esta verdade.
Mas o desemprego não surge por geração espontânea. Resulta do aventureirismo empresarial, da ganância do lucro, do oportunismo da especulação ou do simples desprezo pelos direitos da condição humana. Tudo, anti-valores que a Igreja diz condenar. Mas a «doutrina social da Igreja», sempre que fala em pobreza remete para o divino o que é culpa da organização da sociedade.
A este assunto apaixonante, voltaremos.