Nós, os réus

Correia da Fonseca

Como muitos ou­tros, senti-me en­ga­nado. Era o «Prós e Con­tras», que para aquela noite havia sido anun­ciado com o tí­tulo de «A Crise do Es­tado So­cial». O tema in­te­res­sava-nos muito porque quando se fala de Es­tado So­cial fala-se da nossa si­tu­ação quando ado­e­cemos ou quando o pa­trão nos des­pede, do en­sino dos nossos fi­lhos e con­se­quen­te­mente do seu fu­turo, da maior ou menos pos­si­bi­li­dade fi­nan­ceira de re­cor­rermos aos tri­bu­nais se um dia formos ví­timas de ile­ga­li­dades graves ou bru­tezas de qual­quer tipo, de coisas assim. Seria, pois, o mais im­por­tante das nossas vidas que o pro­grama anun­ciava abordar. Afinal, mal iam de­cor­ridos vinte mi­nutos Fá­tima Campos Fer­reira fez-nos saber que não seria assim, ou que não o seria tanto quanto po­de­ríamos es­perar: afinal, aquele «Prós e Con­tras» iria «ter três partes», tra­tando não apenas do Es­tado So­cial mas também do Or­ça­mento Geral do Es­tado e da re­visão cons­ti­tu­ci­onal, isto é, de as­suntos de que o PSD gosta muito. É certo que os três as­suntos têm entre si uma ine­gável li­gação, so­bre­tudo porque os dois úl­timos estão a ser uti­li­zados como aríetes para a des­truição do pri­meiro. Mas adi­vi­nhava-se como certo que iria haver menos tempo para falar do que mais nos in­te­res­saria, para de­nun­ciar como é pre­ciso o que muito im­porta de­nun­ciar. De resto, ter­mi­nado o pro­grama, ve­ri­ficou-se que ao con­trário do que é ha­bi­tual não acon­te­ceram in­ter­ven­ções por parte da pla­teia. É claro que tais in­ter­ven­ções re­sultam sempre de um crivo an­te­ci­pa­da­mente es­ta­be­le­cido, não de uma total li­ber­dade de in­ter­venção por parte de as­sis­tentes com livre acesso à sala, mas ainda assim cons­ti­tuem sem dú­vida uma opor­tu­ni­dade para uma maior di­ver­si­dade de opi­niões. Desta vez, tudo ficou a cargo dos cinco con­vi­dados em palco, e não pa­rece ex­ces­sivo supor que pelo plau­sível mo­tivo (ou pelo acei­tável pre­texto) de o tempo dis­po­nível para abordar três temas não per­mitir o luxo de in­ter­ven­ções e de­poi­mentos even­tu­al­mente mais «po­pu­lares». E talvez con­venha lem­brar que o que se de­signa por Es­tado So­cial não é mais que o cum­pri­mento de di­reitos ele­men­tares que as­se­gurem uma mí­nima jus­tiça nas so­ci­e­dades e que, quando ele é tra­tado como réu, os réus somos todos nós.

 

Uma im­pos­tura exem­plar

 

Ia o pro­grama nos seus mi­nutos ini­ciais e logo se ouviu uma im­pos­tura a que bem se pode chamar exem­plar: foi Pedro Passos Co­elho a re­cusar «esta ideia de que o Es­tado pode ofe­recer tudo a toda a gente». Era la­pidar: numa só frase, Co­elho ilus­trava a falta de pro­bi­dade in­te­lec­tual que a a di­reita usa para com­bater o pro­jecto de uma so­ci­e­dade que ga­ranta aos ci­da­dãos a sa­tis­fação das suas ne­ces­si­dades mais le­gí­timas. De facto, como aliás lá mais para di­ante foi de­nun­ciado, nin­guém de­fende essa tosca ca­ri­ca­tura de «dar tudo a toda a gente». É in­fe­liz­mente de ad­mitir, isso sim, o risco de uma quase va­ri­ante dessa fór­mula: um Es­tado de tal modo do­mi­nado pela di­reita que tenha como re­sul­tado ex­tor­quir tudo ou quase tudo ao Es­tado, isto é, a todo o povo. Foi assim quando Mi­guel Ma­cedo, do PSD, se re­feriu à pas­sagem para o sector pri­vado de ne­gó­cios com a Saúde como cons­ti­tuindo «uma nova forma de fi­nan­ci­a­mento» desse sector. Quando a seu lado, Mota So­ares vestiu a mesma ideia com ou­tras pa­la­vras, di­zendo que o Es­tado «deve con­tra­tu­a­lizar com o sector pri­vado» a pres­tação de ser­viços de Saúde, per­ce­bendo-se assim que o Es­tado, isto é, a ge­ne­ra­li­dade dos ci­da­dãos, deve pagar aos pri­vados o custo da pres­tação de tais ser­viços in­cluindo ob­vi­a­mente o lucro por eles em­bol­sado. Quando da ter­ceira parte do pro­grama, mais di­rec­ta­mente de­di­cada ao cha­mado Es­tado So­cial e ao seu des­man­te­la­mento em curso, se ou­viram coisas cu­ri­osas a par de im­por­tantes re­po­si­ções da ver­dade. Mota So­ares, do CDS, crismou o pro­cesso de li­be­ra­li­zação dos des­pe­di­mentos com a de­sig­nação pa­tusca de «fle­xi­bi­li­zação da con­tra­tação». No pólo oposto, An­tónio Fi­lipe lem­brou a evi­dência da in­cons­ti­tu­ci­o­na­li­dade do ac­tual «Có­digo do Tra­balho» que ad­mite des­pe­di­mentos sem justa causa contra a letra da Cons­ti­tuição. Mas a res­pon­sa­bi­li­dade da di­reita no ac­tual es­tado de coisas não emergiu com ni­tidez em todo o pro­grama, muito do­mi­nado pela tur­bu­lenta ve­e­mência de Ma­cedo, e o Es­tado So­cial saiu do pro­grama com a imagem de ar­guido car­re­gado de sus­pei­ções. O que vai per­mitir que, se dei­xarmos, pros­siga o pro­cesso do seu es­quar­te­ja­mento e exe­cução final.



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