Sem relógio de pulso

Correia da Fonseca

Há ho­mens com pouca sorte. Ou, pelo menos, que vivem mo­mentos de ma­ni­festo azar. Por exemplo, Car­valho da Silva. Es­tava ele sen­tado no palco do Te­atro Ca­mões para que no pro­grama «Prós e Con­tras» par­ti­ci­passe com ou­tros con­vi­dados num de­bate acerca da si­tu­ação eco­nó­mico-fi­nan­ceira do País, e antes mesmo que a con­versa ti­vesse ar­ran­cado já a pouca sorte mos­trava os seus po­deres: es­tavam ali três re­pre­sen­tantes de as­so­ci­a­ções pa­tro­nais, um ban­queiro, um an­tigo mi­nistro, um se­nhor pro­fessor que os no­ti­ciá­rios dão como con­sultor in­formal do dr.Passos Co­elho, e sin­di­ca­listas não es­tava mais ne­nhum. Não é pre­ciso ser um ma­níaco da re­pre­sen­tação pro­por­ci­onal para es­tra­nhar a com­po­sição da­quele grupo de con­vi­dados. Será que em Por­tugal há três vezes mais pa­trões que tra­ba­lha­dores? Será que há tantos ban­queiros quantos sin­di­ca­listas? O facto é que Car­valho da Silva es­tava ali iso­lado pe­rante um grupo de ca­va­lheiros cujas po­si­ções fa­cil­mente se adi­vi­nhava serem opostas às suas, o que aliás não de­morou a con­firmar-se. Já era azar, não podia ser outra coisa. De­pois co­me­çarem as in­ter­ven­ções. Car­valho da Silva ouviu Ja­cinto Nunes, ouviu Abel Ma­teus, ouviu Fer­nando Ul­rich, ouviu não sei quem mais, todos a ex­pen­derem opi­niões sempre na­tu­ral­mente doutas com as quais não es­tava de acordo. Ouviu-as, e nós, povo te­les­pec­tador, ou­vimo-las com ele. Até que, fi­nal­mente, chegou a sua vez. Co­meçou a falar, por sinal com pa­la­vras for­te­mente ex­pres­sivas do seu en­ten­di­mento to­tal­mente oposto ao que até ali se ou­vira, e quando ele es­tava ma­ni­fes­ta­mente lan­çado na sua ex­po­sição, zás!: Fá­tima Campos Fer­reira, para dizer que iria re­tirar-lhe a pa­lavra porque o pro­grama tinha de ir para in­ter­valo. Era azar e não dos mais pe­quenos, a coisa não pode ter outra ex­pli­cação.


A cer­teza re­for­çada


Su­jeito de boa fé, não sus­peito de que os com­pro­missos co­mer­ciais da RTP pu­dessem es­perar dois ou três mi­nutos mais se Car­valho da Silva não ti­vesse ini­ciado a sua in­ter­venção com tanta fo­go­si­dade e com sín­teses tão di­ri­gidas ao fun­da­mental. Disse ele, cal­cule-se!, e para mais com o ar de ter per­dido um pouco a pa­ci­ência que con­tudo deve ser muita e já du­ra­mente ex­pe­ri­men­tada, ter por certo que a ac­tual crise é «o maior roubo or­ga­ni­zado da His­tória da hu­ma­ni­dade». Que o fu­turo dos povos não vai poder con­ti­nuar a ser «mais do mesmo». Que não pode pros­se­guir a apli­cação ao mundo do agora do­mi­nante fun­da­men­ta­lismo ne­o­li­beral. Lem­brou que as fa­mi­ge­radas agên­cias de ra­ting não passam de «ex­ten­sões do ac­tual sis­tema fi­nan­ceiro». Disse isto em pouco tempo e quase de ra­jada, pelo que bem se en­tende que o in­ter­valo para as pu­bli­ci­dades não pu­desse es­perar nem mais um se­gundo. Passou-se, pois, aos anún­cios, essa «ma­ra­vilha fatal da nossa idade», se me é per­mi­tido usar aqui as pa­la­vras que o nosso poeta na­ci­onal uti­lizou num con­texto com­ple­ta­mente di­fe­rente. E, pas­sados os anún­cios, de­correu mesmo toda a se­gunda parte do pro­grama sem que fosse pos­sível ouvir Car­valho da Silva a re­tomar a sua in­ter­venção: pas­sara a opor­tu­ni­dade de que ele pro­va­vel­mente abu­sara sem atender às sen­si­bi­li­dades na­tu­ral­mente de­li­cadas dos seus com­pa­nheiros de de­bate e só vol­ta­ríamos a ouvi-lo lá para a ter­ceira parte. Ainda assim, porém, o mal es­tava feito: por este nosso País fora ha­veria quem o ti­vesse ou­vido e ou­vindo-o re­for­çara a cer­teza de que as crises que agravam a po­breza dos po­bres, a in­dig­nação dos ex­plo­rados, a an­gústia das gentes (agora usa-se dizer «das fa­mí­lias», e talvez fosse in­te­res­sante es­gra­vatar à pro­cura da ex­pli­cação para esta moda) não be­ne­fi­ciam de uma es­pécie de es­ta­tuto de eter­ni­dade. Quem com acres­cida se­gu­rança se re­en­con­trasse com uma sa­be­doria de­ci­siva: a de que a His­tória não está pa­rada e, como en­sinou Ga­lileu a pro­pó­sito do pró­prio pla­neta que ha­bi­tamos, move-se. In­fe­liz­mente mais de­vagar do que o de­sejam os muitos mi­lhões que es­peram an­si­o­sa­mente pelo seu mo­vi­mento: está visto que a His­tória, essa apa­rente mo­len­gona, não está muito atenta a essa questão do tempo, que não usa re­lógio de pulso com ca­len­dário in­te­grado, e por isso os povos muitas vezes se aplicam a dar-lhe uns em­pur­rõe­zi­nhos que lhes possam ace­lerar os passos. Mas as pa­la­vras do di­ri­gente da CGTP, ainda que in­ter­rom­pidas, terão vindo de­volver a muitos a cer­teza da mu­dança a ca­minho. E só por isso, não se­gu­ra­mente pelas su­pos­ta­mente sá­bias pa­la­vras dos res­tantes in­ter­ve­ni­entes do pro­grama, este «Prós e Con­tras» valeu a pena.



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