Uma hora com Quixote

Correia da Fonseca

No pas­sado do­mingo voltei a ver e ouvir José Sa­ra­mago. No ecrã do meu te­le­visor, é claro, e não em qual­quer pro­grama da te­le­visão por­tu­guesa (que, quem sabe?, talvez se pre­pare para es­quecer o nosso Nobel por longo tempo) mas sim num pro­grama do canal His­tória, dis­tri­buído por cabo, como é sa­bido. Como já aqui terá sido dito, e in­fe­liz­mente por­ven­tura mais de uma vez, há al­turas em que um homem normal sente que não aguenta mais horas con­se­cu­tivas da ali­ança da me­di­o­cri­dade com a im­pos­tura e, então, deixa-se se­duzir pela «qui­mera azul da emi­gração», di­gamos assim para re­frescar a prosa com as pa­la­vras de Ce­sário, e foge pro­cu­rando re­fúgio num canal es­tran­geiro. Desta vez foi ao His­tória que me acolhi, e aliás não por acaso: é que eu sabia que por aquela hora es­taria a ser trans­mi­tido ali um do­cu­men­tário sobre D.Qui­xote, o fi­dalgo man­chego de es­plên­dida lou­cura, e pensei que ele seria um bom an­tí­doto para o enjoo que me to­mara.

Aliás eu já vira em tempos o do­cu­men­tário e tinha dele uma vaga mas ainda ex­ce­lente me­mória, o que era uma ga­rantia. O que eu não re­cor­dava já era a pre­sença de Sa­ra­mago, con­vi­dado pela TV es­pa­nhola a co­mentar a fi­gura criada por Cer­vantes, pelo que foi um prazer acres­cido, ainda que to­cado por al­guma ine­vi­tável amar­gura, o re­en­contro com ele e com as suas pa­la­vras in­te­li­gentes e ade­quadas como sempre. Su­bli­nhou Sa­ra­mago, de­sig­na­da­mente, que Cer­vantes não «mata» Qui­xote no final da no­vela, quem morre é um fi­dalgo em­po­bre­cido que re­gressou a sua casa de­pois de de­sistir de uma aven­tura alu­ci­nada e ge­ne­rosa.

E bem sa­bemos que de facto Qui­xote não apenas so­bre­viveu mas que con­tinua vivo e, mais ainda, ima­gi­nável ven­cedor de muitos com­bates. Quem du­vide disso queira com­parar os tempos de Qui­xote/​Cer­vantes com a ac­tu­a­li­dade, in­ven­ta­riar mesmo por alto os mi­lhões de acor­ren­tados que de então para cá se li­ber­taram de gri­lhetas e os ou­tros tantos servos que pa­trões bru­tais já não fla­gelam. É certo que essas vi­tó­rias não foram re­sul­tado das in­ves­tidas de um ca­va­leiro so­li­tário e um pouco ri­dí­culo, mas sim da luta dos pró­prios agri­lho­ados e servos, mas uma coisa está fora de dú­vida: Qui­xote es­teve com eles e terá gos­tado do re­sul­tado desses com­bates.

 

Mais e di­fe­rentes mundos

 

Es­tive, pois, cerca de uma hora com Qui­xote e al­guns breves mi­nutos com Sa­ra­mago. No do­mingo. Mas, como é cos­tume dizer-se em maré de pes­si­mismos, o que é bom passa de­pressa e o que é mau não tarda a voltar. Assim, logo no dia se­guinte, se­gunda-feira, a te­le­visão en­car­regou-se de me lem­brar que a fi­dal­guia ac­tual, que em nada se pa­rece com o ca­va­leiro de La Mancha, faz planos a médio prazo para manter e re­forçar um pro­cesso de re­cu­pe­ração fi­nan­ceira e eco­nó­mica que se ca­rac­te­riza pela vam­pi­ri­zação dos já po­bres para que um li­mi­tado pu­nhado de ca­va­lheiros possa con­ti­nuar a «criar ri­queza», isto a co­berto da já co­nhe­cida es­tória de en­cantar se­gundo a qual só se os aju­darmos a «criar ri­queza» é que ela, a ri­queza, pode ser dis­tri­buída. E dizem-nos isto como se nós, os pa­ga­dores de crises, não sou­bés­semos que o mo­mento da mí­tica dis­tri­buição nunca chega por mais flo­res­centes que andem os ne­gó­cios. Assim, na mesma se­gunda-feira, no de­curso de uma ope­ração de zap­ping com que pro­cu­rava es­capar ao pior, de­parei com um jovem que não cuidei de iden­ti­ficar e que re­petia, lá por pa­la­vras suas e em­bora sob fór­mulas não evi­dentes, a es­ta­fada re­ceita de cortar nos sa­lá­rios e nos apoios so­ciais, isto é, nas formas pos­sí­veis de uma ainda que avara «dis­tri­buição da ri­queza». E acres­cen­tava ele, para re­forço da pres­crição, que «todos os eco­no­mistas o dizem». Aí, en­ca­lhei: «todos os eco­no­mistas», quais? Talvez a mai­oria dos que o são por via das uni­ver­si­dades por­tu­guesas, pois há dé­cadas que elas se cons­ti­tuíram em pro­du­toras em série de téc­nicos for­ma­tados pelo ne­o­li­be­ra­lismo im­por­tado e aí estão eles, iguai­zi­nhos entre si como sol­da­di­nhos de chumbo saídos da mesma caixa. Mas também quanto às ci­ên­cias eco­nó­micas e po­lí­ticas, pois sempre elas andam en­tre­la­çadas entre sim, «há mais mundos», como diria o outro se­nhor. E são mundos ha­bi­tados, ainda que pra­ti­ca­mente in­ter­ditos. Neles estão téc­nicos que sabem de so­lu­ções di­fe­rentes. E junto deles, quase apenas vi­sível como uma si­lhueta, es­tará Qui­xote, o que li­bertou con­de­nados e de­fendeu servos, para sempre so­bre­vi­vente à morte de um fi­dalgo que era o seu duplo mas es­tava longe de pos­suir o fogo in­terno da fome e sede de jus­tiça.



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