A Crise de Identidade do Dirigente Desportivo Benévolo

A. Mello de Carvalho

A acção do di­ri­gente be­né­volo in­tegra três fun­ções que se in­ter­li­guem entre si:
- O co­nhe­ci­mento ge­ne­ra­li­zado sobre as di­versas fun­ções e ta­refas de­sen­vol­vidas pelo clube;

- A di­mensão téc­nica capaz de lhe per­mitir o de­sem­penho de certas fun­ções mais es­pe­cí­ficas (gestão, ani­mação, re­pre­sen­tação, etc.);

- A de­fesa dos va­lores so­ciais e cul­tu­rais que o clube deve de­sem­pe­nhar.

Em torno destas três fun­ções, aliás ha­bi­tu­al­mente mal co­nhe­cidas, gerou-se grande con­fusão. Ela ex­plica, em larga me­dida, as di­fi­cul­dades em en­tender, em toda a sua ex­tensão, o papel do di­ri­gente. Mas, para além dela, existem in­te­resses mais ou menos obs­curos que, no fundo, pro­curam al­cançar dois ob­jec­tivos: ou fazer com que o di­ri­gente in­tegre a sua acção e a sua forma de pensar na visão eco­no­mi­cista do­mi­nante, ou con­si­dere o «be­né­volo» como uma mão-de-obra gra­tuita ma­ni­pu­lável com fa­ci­li­dade pelos in­te­resses do des­porto co­mer­ci­a­li­zado.

De facto, estes dois ob­jec­tivos con­fundem-se, mas convém dis­tingui-los na me­dida em que o pri­meiro parte da pró­pria con­vicção pes­soal (mais ou menos cons­ci­ente) do di­ri­gente, e a se­gunda de um pro­jecto ma­ni­pu­la­tório com ra­mi­fi­ca­ções di­versas. Esta si­tu­ação tem con­se­guido im­pedir uma aná­lise capaz de fugir às ideias feitas pro­mo­vidas pelo des­porto co­mer­ci­a­li­zado e opõe-se à aná­lise do papel e da função do grande nú­mero de di­ri­gentes que não se in­te­gram, pelas pró­prias con­di­ções con­cretas dos seus clubes, na­quele do­mínio.

Nestes clubes, de raiz po­pular e di­rec­ta­mente in­te­grados na co­mu­ni­dade, a ex­pressão das três fun­ções re­fe­ridas as­sume pleno sig­ni­fi­cado, mas também é mais di­fícil en­tendê-las e pô-las em prá­tica.

A ten­dência geral, mais ou menos for­mu­lada com ni­tidez, é de se­guir na cor­rente mer­can­ti­lista con­si­de­rando que o di­ri­gente, para ser eficaz, deve do­minar as novas téc­nicas de co­mer­ci­a­li­zação. O di­ri­gente be­né­volo passa, então, a cons­ti­tuir uma es­pécie de téc­nico de se­gunda classe, um sub-pro­fis­si­onal, um sim­ples uten­sílio ao ser­viço de uma téc­nica.

In­fe­liz­mente esta con­cepção pe­netra cada vez mais pro­fun­da­mente a cons­ci­ência de todo o campo as­so­ci­a­tivo, pro­vo­cando grandes di­fi­cul­dades na com­pre­ensão das ver­da­deiras fun­ções do di­ri­gente. In­clu­sive, esta si­tu­ação cria atritos e mal en­ten­didos nas re­la­ções com os téc­nicos.

Na re­a­li­dade, o di­ri­gente be­né­volo não é obri­gado a co­nhecer os pro­cessos téc­nicos, seja qual for a sua na­tu­reza. O di­ri­gente não pode, nem deve, deixar-se as­saltar pela an­gus­tiosa dú­vida de que não possui co­nhe­ci­mentos su­fi­ci­entes.

Cer­ta­mente que o di­ri­gente be­né­volo que possua co­nhe­ci­mentos nas di­fe­rentes áreas só be­ne­fi­ciará com isso. Mas aquilo que se lhe pede é a ca­pa­ci­dade em com­pre­ender os me­ca­nismos ge­né­ricos. A es­pe­ci­fi­ci­dade da sua acção é a de se cons­ti­tuir como um ge­ne­ra­lista sem subs­ti­tuir os pro­fis­si­o­nais.

A função do di­ri­gente be­né­volo não é do mesmo tipo da­quela que deve ca­rac­te­rizar a acção do téc­nico. Hoje é fre­quente ouvir dizer-se que o pri­meiro deve saber gerir e «fazer o mar­ke­ting» do seu clube. Mas isso acon­tece desde o início do mo­vi­mento as­so­ci­a­tivo. E deve dizer-se que os di­ri­gentes, ge­ne­ra­listas por vo­cação e força das cir­cuns­tân­cias, não se saíram nada mal dessas fun­ções.

Convém, por isso, não ali­nhar com a de­pre­ci­ação ge­ne­ra­li­zada que, na ac­tu­a­li­dade, é lan­çada sobre o di­ri­gente be­né­volo. Bem pelo con­trário, as provas que deu e que, bem vistas as coisas, con­tinua a dar, de­mons­tram uma com­pe­tência ge­ne­ra­li­zada que, aliás, eno­brece a pró­pria função.

A função do di­ri­gente be­né­volo con­siste, ba­si­ca­mente, em afirmar os va­lores so­ciais da ac­ti­vi­dade de­sen­vol­vida pelo seu clube. Só ele o pode fazer, e quando tal não se ve­ri­fica, como acon­tece ac­tu­al­mente em muitos casos, esses va­lores de­sa­pa­recem.

A dú­vida sobre os va­lores so­ciais do clube tra­du­zida pela falta de re­co­nhe­ci­mento «real» do seu papel pela so­ci­e­dade cons­tituí um dos as­pectos es­sen­ciais da «crise» do as­so­ci­a­ti­vismo e a ver­da­deira causa da crise do di­ri­gismo be­né­volo. Não é, por­tanto, qual­quer questão li­gada ao «ma­na­ge­ment», ao «mar­ke­ting», ou a qual­quer outra téc­nica com de­sig­nação mais ou menos anglo-sa­xó­nica, que pode ex­plicar ou jus­ti­ficar essa crise.

A função do di­ri­gente be­né­volo é a de abrir novas vias, dar um sen­tido à acção de­sen­vol­vida pelo clube de acordo com o pro­jecto so­cial que de­fende. Na­tu­ral­mente, quando este pro­jecto não existe, torna-se di­fícil não só en­tender a acção que deve ser de­sen­vol­vida, como per­ceber o sen­tido que deve tomar.

Nestas cir­cuns­tân­cias o di­ri­gente be­né­volo não sabe quem é nem para onde vai: perde a sua pró­pria iden­ti­dade e com ela a do pró­prio clube. Evi­den­te­mente que esta questão não tem origem nem é es­pe­cí­fica do mo­vi­mento as­so­ci­a­tivo. Diz res­peito a toda a so­ci­e­dade e é no pró­prio pro­jecto de so­ci­e­dade que se tem de pro­curar a origem e o sig­ni­fi­cado das crises.



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