Querem-nos fichar a todos!

António Vilarigues

A co­mu­ni­cação so­cial di­vulgou a exis­tência de um Acordo bi­la­teral que terá sido as­si­nado em Junho de 2009 entre o Go­verno Por­tu­guês e as au­to­ri­dades dos Es­tados Unidos da Amé­rica (EUA).

Ob­jec­tivo deste acordo é, em nome do com­bate ao ter­ro­rismo, pos­si­bi­litar às au­to­ri­dades dos EUA o acesso aos dados pes­soais bi­o­mé­tricos e bi­o­grá­ficos que constam das bases de dados de iden­ti­fi­cação civil e cri­minal do Es­tado Por­tu­guês. O mesmo se aplica à base de dados na­ci­onal de perfis de ADN.

Por ou­tras pa­la­vras: o FBI quer ter acesso aos dados dos Bi­lhetes de Iden­ti­dade de todos os por­tu­gueses. E o Go­verno por­tu­guês está dis­posto a ceder-lhos.

Em torno desta questão vá­rios pro­blemas se le­vantam.

Em pri­meiro lugar, o en­qua­dra­mento ju­rí­dico e a prá­tica legal exis­tente sobre a Pro­tecção de Dados Pes­soais dos dois lados do Atlân­tico.

Nos EUA, por exemplo, ainda hoje não existe le­gis­lação a res­peito da re­colha, uso e co­mer­ci­a­li­zação de dados pes­soais por parte de em­presas pri­vadas. Na União Eu­ro­peia (EU) e em Por­tugal há le­gis­lação clara sobre esta te­má­tica. No­me­a­da­mente no que res­peita ao tra­ta­mento dos dados pes­soais e à livre cir­cu­lação desses dados.

A Cons­ti­tuição Por­tu­guesa, no seu ar­tigo 35.º, n.º 4, proíbe o acesso a dados pes­soais de ter­ceiros, salvo em casos ex­cep­ci­o­nais pre­vistos na lei. E a Lei 67/​98 de 26 de Ou­tubro, es­ti­pula no seu ar­ti­cu­lado (art.º 6.º) que «O tra­ta­mento de dados pes­soais só pode ser efec­tuado se o seu ti­tular tiver dado de forma inequí­voca o seu con­sen­ti­mento (…)» salvo nos casos ex­cep­ci­o­nais pre­vistos na lei.

Mais (art.º 7.º: «É proi­bido o tra­ta­mento de dados pes­soais re­fe­rentes a con­vic­ções fi­lo­só­ficas ou po­lí­ticas, fi­li­ação par­ti­dária ou sin­dical, fé re­li­giosa, vida pri­vada e origem ra­cial ou ét­nica, bem como o tra­ta­mento de dados re­la­tivos à saúde e à vida se­xual, in­cluindo os dados ge­né­ticos.». Nos EUA tudo isto é pos­sível e legal. E, como se sabe, é bem real.

Em Por­tugal todos nós temos di­reito a ser in­for­mados sobre a forma e o con­teúdo da re­colha e tra­ta­mento dos nossos dados pes­soais. Temos di­reito de aceder aos mesmos e de os rec­ti­ficar e/​ou blo­quear. Tudo isto, como é óbvio, é in­com­pa­tível com o seu for­ne­ci­mento a um Es­tado ter­ceiro, in­dis­cri­mi­na­da­mente, sem que haja uma fla­grante vi­o­lação da Cons­ti­tuição da Re­pú­blica e da Lei.

Em se­gundo lugar, a forma «ex­pe­dita» como a admi­nis­tração dos EUA está a ne­go­ciar esta questão.

São co­nhe­cidas as di­fi­cul­dades re­la­ci­o­nadas com as ob­jec­ções de vá­rios es­tados e das pró­prias ins­ti­tui­ções da União Eu­ro­peia à ce­dência desse tipo de dados. Daí as ne­go­ci­a­ções bi­la­te­rais com Por­tugal. Ale­manha, Es­panha, Itália e Grécia também pa­re­ceram ter man­dado às ur­tigas a tão pro­cla­mada Po­lí­tica Ex­terna Comum!

Em ter­ceiro lugar, não po­demos deixar de re­ferir o «Ter­ro­rist Scre­e­ning Center» (Centro de Tri­agem de Ter­ro­rismo).

Trata-se de uma es­tru­tura do FBI que reúne as in­for­ma­ções sobre os sus­peitos de ter­ro­rismo. Da Base de Dados con­so­li­dada aí criada constam mais de 500 mil pes­soas (um mi­lhão se­gundo a Ame­rican Civil Li­ber­ties Union (ACLU)). Se­gundo um re­la­tório do de­par­ta­mento da Jus­tiça de 2007, 20 000 novos sus­peitos eram acres­cen­tados à lista a cada mês.

A lista in­clui pes­soas fa­le­cidas, como o ex-di­tador ira­quiano Saddam Hus­sein, exe­cu­tado em De­zembro de 2006, e até o se­nador ame­ri­cano Ted Ken­nedy, o ex-ac­ti­vista e hoje de­pu­tado John Lewis e o cantor mu­çul­mano Yusuf Islam (ex-Cat Ste­vens). O ex-pre­si­dente da África do Sul e Prémio Nobel da Paz Nelson Man­dela até Junho de 2008 também cons­tava da lista. Bem como o ANC – par­tido go­ver­nante na África do Sul. Menos de cinco por cento das pes­soas da lista são ci­da­dãos dos Es­tados Unidos ou aí re­si­dentes.

Mas a fúria con­tro­la­dora dos EUA não se fica por aqui. Em nome da luta contra o ter­ro­rismo, a Ad­mi­nis­tração norte-ame­ri­cana têm con­se­guido obter acesso a um vasto con­junto de in­for­ma­ções pes­soais de ci­da­dãos eu­ro­peus. Através do cha­mado Acordo SWIFT (So­ciety for Worldwide In­ter­bank Fi­nan­cial Te­le­com­mu­ni­ca­tion) – nome da em­presa que gere 80% das trans­fe­rên­cias fi­nan­ceiras elec­tró­nicas em 208 países do mundo – já têm o acesso às Bases de Dados ban­cá­rias.

Existe ainda um outro acordo pro­vi­sório da UE com os EUA, o cha­mado Pas­senger Name Re­cord (PNR). Através desse acordo são trans­fe­ridos todos os dados pes­soais dos pas­sa­geiros que vão vi­ajar para os EUA. Tais como os que são en­tre­gues na agência de vi­a­gens ou na com­pa­nhia aérea, e podem abranger as re­fei­ções a bordo, o nú­mero e des­pesas com o cartão de cré­dito e o hotel de es­tadia. Tudo, é claro, em nome do sa­cros­santo com­bate ao ter­ro­rismo in­ter­na­ci­onal.

Fi­nal­mente, a ac­tu­ação do Go­verno Por­tu­guês.

Re­fere a co­mu­ni­cação so­cial que em Junho de 2009 Janet Na­po­li­tano, se­cre­tária do De­par­ta­mento de Se­gu­rança In­terna norte-ame­ri­cano es­teve em Por­tugal e as­sinou o acordo com os mi­nis­té­rios da Ad­mi­nis­tração In­terna e da Jus­tiça. Mas o Go­verno de José Só­crates só em No­vembro de 2010 so­li­citou pa­recer à Co­missão Na­ci­onal de Pro­tecção de Dados (CNPD) sobre a ma­téria.

E porquê o se­cre­tismo desde 2009 até agora? Se­cre­tismo tanto mais es­tranho quanto esta ma­téria é da com­pe­tência re­ser­vada da As­sem­bleia da Re­pú­blica. Quer por se tratar de um Acordo In­ter­na­ci­onal, quer por se tratar de ma­téria re­la­tiva a di­reitos, li­ber­dades e ga­ran­tias. O Go­verno ac­tuou de forma ile­gí­tima e de má fé e pro­curou co­locar o país pe­rante um facto con­su­mado. Por­tugal não é, nem quer ser, uma fi­lial do FBI!



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