Em castelhano

Correia da Fonseca

Um dia destes passou mais um ani­ver­sário da Con­fe­rência de Ialta. Era 1945, a Ale­manha nazi es­tava der­ro­tada. Es­tava-o de facto desde 43, quando o exér­cito co­man­dado por Von Paulus havia sido ba­tido em Es­ta­li­ne­grado e pro­ta­go­ni­zara a maior ren­dição mi­litar da His­tória, e não em con­sequência do de­sem­barque anglo-ame­ri­cano na Nor­mandia, es­tra­te­gi­ca­mente tardio. Ne­ruda es­cre­vera então, can­tando Es­ta­li­ne­grado, que aquele havia sido «el dia entre la noche y la alba» e ti­vera a razão que as­siste a al­guns po­etas que são também ho­mens atentos e lú­cidos. Es­tava-se, pois, pre­vi­si­vel­mente apenas a al­guns meses do fim da guerra que du­rante quase seis anos trans­for­mara num in­ferno a Eu­ropa e o mundo, e em Ialta, na Cri­meia, não por acaso ter­ri­tório da União So­vié­tica, reu­niram-se Chur­chill, Ro­o­se­velt e Es­ta­line. Tra­tava-se não já tanto de saber como con­sumar a vi­tória como de or­ga­nizar o que se lhe se­guiria. Quer isto dizer que Ialta foi um mo­mento ex­tra­or­di­na­ri­a­mente im­por­tante para os tempos que se lhe se­guiram, e de certo por isso o ac­tual Oci­dente Atlân­tico gosta pouco de o lem­brar ou, quando o lembra, é para o fal­si­ficar do modo que pa­reça dar-lhe mais jeito. Este ano, tanto quanto pude ver, a te­le­visão por­tu­guesa apenas fez a Ialta breves re­fe­rên­cias. Ainda assim, não faltou à sua ha­bi­tual alusão ao que de­signa por «par­tilha do mundo» entre as grandes po­tên­cias ven­ce­doras do con­flito, com a re­fe­rência que lhe é obri­ga­tória ao cha­mado «im­pe­ri­a­lismo so­vié­tico» su­pos­ta­mente con­subs­tan­ciado na emer­gência de re­gimes as­su­midos como sendo de de­mo­cracia po­pular nos países agora co­mum­mente de­sig­nados por Eu­ropa do Leste. Como se sabe, a partir da iden­ti­fi­cação desse ale­gado im­pe­ri­a­lismo com sede em Mos­covo foi cons­truído o re­ceio de que o Exér­cito Ver­melho vi­esse pela Eu­ropa abaixo, en­trasse em Paris, do­mi­nasse o con­ti­nente in­teiro, o que ha­veria de jus­ti­ficar o dis­curso de Chur­chill em Fulton e a cri­ação do Pacto do Atlân­tico como «res­posta» a um Pacto de Var­sóvia que só sur­giria, afinal, anos mais tarde. A men­tira tem as pernas curtas mas não se im­porta com isso porque, não obs­tante, anda muito e corre bem.

 

A se­gunda manta

 

Ora, acon­tece que ao meu te­le­visor lhe deu agora para, sem que eu ti­vesse cons­ci­en­te­mente feito al­guma coisa por isso, aco­lher dois ca­nais, pelo menos dois, se­di­ados do outro lado do mar e fa­lados em língua cas­te­lhana, aquela que muitas vezes nas nossas con­versas cor­rentes de­sig­namos im­pro­pri­a­mente por «es­pa­nhol». E também esses se re­fe­riram agora à Con­fe­rência de Ialta, mas não exac­ta­mente como o fi­zeram os ca­nais lu­si­tanos que à evo­cação do acon­te­ci­mento de­di­caram al­guns fu­gi­dios mi­nutos. Num dos tais de língua cas­te­lhana apa­receu mesmo um su­jeito, pro­fessor uni­ver­si­tário e es­pe­ci­a­lista em His­tória con­tem­po­rânea, que ex­plicou umas coisas, sendo que quanto nos disse foi subs­tan­ci­al­mente di­fe­rente do que por cá nos é re­pe­tido há dé­cadas acerca do tal «im­pe­ri­a­lismo so­vié­tico». In­formou-nos ele de que em Ialta houve sig­ni­fi­ca­tivas ce­dên­cias de Es­ta­line em re­lação às suas po­si­ções ini­ciais (o que, faça-se essa jus­tiça que não é favor ne­nhum, também foi dito num dos ca­nais por­tu­gueses ainda que talvez de modo menos claro), mas que num ponto foi in­fle­xível: na in­clusão dos países bal­câ­nicos mais a Leste, que aliás ha­viam sido li­ber­tados pelo Exér­cito Ver­melho dos re­gimes na­zi­fas­cistas que neles se ha­viam im­plan­tado, na cha­mada «zona de in­fluência da URSS». Eram a Ro­ménia, a Hun­gria, a Po­lónia, todos com fron­teiras com a União So­vié­tica. E mais lem­brou o re­fe­rido se­nhor: que para essa in­tran­si­gência tinha José Es­ta­line um for­tís­simo mo­tivo: é que a Rússia e a URSS que lhe su­cedeu ha­viam so­frido no pe­ríodo de pouco mais de um sé­culo, de 1812 a 1941, três guerras a Oeste, duas delas sob a forma de cru­de­lís­simas e de­vas­ta­doras in­va­sões, pelo que era de ele­mentar pru­dência pa­trió­tica e de toda a le­gi­ti­mi­dade po­lí­tica as­se­gurar-se de que nas suas fron­teiras oci­den­tais não se vol­tassem a ins­talar re­gimes hostis. Era, pois, uma exi­gência que se en­rai­zava num cui­dado pre­ven­tivo de le­gí­tima de­fesa, isto in­de­pen­den­te­mente de ra­zões de ordem in­terna para cada um desses países. E ali es­tava eu, e de­certo mi­lhões de ou­tros te­les­pec­ta­dores, a as­sistir à des­mon­tagem da lenda do «im­pe­ri­a­lismo so­vié­tico» a impor a sua ex­pansão. Ali es­tava eu a aprender, ou a re­forçar apren­di­za­gens an­tigas, em língua cas­te­lhana. Diz o povo que o diabo tem uma manta com que cobre e outra com que des­cobre. O meu com­pu­tador usara a se­gunda manta.



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