Varrer o lixo para debaixo da cama
Não é novidade dizer-se que a propaganda anti-sovética não olhava a meios para atingir os seus fins. As centrais capitalistas mundiais apregoavam, por exemplo, que nos estados socialistas as confissões religiosas eram perseguidas e os crentes eliminados da vida pública. Nada de mais falso, é evidente. Basta olhar-se para o número de templos em actividade, antes e depois da Revolução de Outubro; para o surto dos novas ramos religiosos instalados na URSS; para a normalização jurídica das relações entre o Estado e a Igreja; ou para o direito reconhecido à constituição de associações religiosas nas áreas de cada templo, para se constatar a falsidade dessas acusações. As associações confessionais podiam desenvolver actividades litúrgicas, administrar os patrimónios das igrejas, recolher donativos voluntários (isentos de quaisquer taxas ou contribuições), gerir os valores monetários de cada congregação, etc. Funcionavam em todo o território soviético dezenas de escolas religiosas de ensino especializado. O Estado socialista fornecia gratuitamente aos templos as instalações onde eles funcionavam.
É altura para tudo isto ser recordado. O capitalismo desmantelou os aparelhos dos estados proletários, fez as suas festas e deitou os seus foguetes mas hoje é o que se vê: está de rastos mas continua a ameaçar. Porém, se ele não estoirar com o planeta ou não exterminar a humanidade, então – através da luta – tudo se recomporá: a vida será mais livre e justa, pacífica e trabalhadora, sem classes de senhores e de escravos. Não recorrerá mais a mentiras e ilusões.
A liberdade de consciência
Nesta importante área específica da liberdade de consciência a questão central foi e continua a ser outra. O Partido Comunista no poder e a assembleia das repúblicas socialistas promulgaram, logo após a vitória da «Revolução de Outubro», um conjunto de disposições cujo principal instrumento era a lei da «Separação de poderes da Igreja e do Estado, da Escola e da Igreja». Ou seja: direitos e deveres que ao Estado competissem era ao Estado que incumbia proteger e respeitar. Sem quaisquer excepções, nenhuma confissão religiosa poderia ultrapassar estas marcas do poder revolucionário. E todos os credos e crenças seriam consideradas iguais perante a Lei. Uma solução equilibrada que permitia às igrejas, se quisessem, exercer acções de solidariedade sem que, contudo, tais funções pudessem servir de pretexto a formas políticas de organização, subversivas e antidemocráticas.
O que se passa agora em Portugal, nas áreas públicas onde a Igreja intervém, espelha muito esta segunda intenção. Se os católicos praticassem simplesmente a caridade, nenhuma crítica que lhes fizessem teria razão de ser. Mas não, não é assim.
Num país de pobres e de ricos, é de todo em todo evidente que algumas IPSS menos protegidas lutam com falta de recursos e que um pequeno punhado de leigos católicos se sacrifica efectivamente para ajudar os calvários dos fracos e dos pobres. Mas é intolerável que a Segurança Social, a Saúde, a Economia e o Trabalho, a Educação, sejam campo aberto para manobras políticas.
Na base da pirâmide caritativa da Igreja, apenas um limitado número de instituições surge por gestação natural, como nos tempos do associativismo da I República. Regra geral, esses pequenos núcleos obedecem a leis e normas internas corporativas e articulam-se entre si, estabelecendo pactos com o poder local e criando parcerias com os ricos. Cedo, os frágeis movimentos paroquiais se transformam em IPSS; estas, organizam-se em áreas específicas; depois – caso das Misericórdias, das ONG, das Fundações, das Mutualidades e de outras mais – investem em negócios lucrativos que nada têm a ver com o exercício da caridade; imperceptivelmente, os níveis representativos dessas formações sociocaritativas atingem patamares cada vez mais complexos e formam uniões, federações, confederações (inclusivamente, intercionalizam-se), «arrumando-se» nos degraus de uma pirâmide em cujo cume se situam o aparelho permissivo do Estado e a hierarquia implacável da Igreja.
Pelo caminho, as ruas ficam juncadas do lixo das mentiras e dos crimes que se cometem impunemente e estão cada vez mais à nossa vista. Coisa indiferente para quem detém o poder do capital e o sacramento da absolvição. Porque, com o lixo, faz-se assim: junta-se, divide-se em montinhos e varre-se para debaixo da cama…
A cama do Orçamento onde a Igreja e o capital passam noites delirantes!