A produtora de monstros

Correia da Fonseca

Como é sa­bido, no pas­sado sá­bado todos os ca­nais por­tu­gueses de TV se apli­caram a co­brir a ma­ni­fes­tação que, re­par­tida por di­versas ci­dades do País mas cen­trada so­bre­tudo em Lisboa e no Porto, ex­primiu a re­jeição po­pular do mo­delo de so­ci­e­dade que tem vindo a ser-nos im­posto. Direi mesmo que não tenho me­mória de qual­quer ma­ni­fes­tação an­te­rior ter me­re­cido uma tão em­pe­nhada co­ber­tura quanto esta, e o facto talvez me­re­cesse al­guma re­flexão. Su­cede, porém, que o acon­te­ci­mento tem di­men­sões tais que ex­cedem a ca­pa­ci­dade opi­na­tiva de um te­les­pec­tador fa­ti­gado e que, para além disto, é certo que ou­tros com mai­ores qua­li­fi­ca­ções e au­to­ri­dade não dei­xarão de dizer o que é pre­ciso ser dito e por­ven­tura de dis­sipar al­guns equí­vocos que seja pre­ciso dis­sipar. Fica, pois, bem en­tregue essa ta­refa, e pouco adi­an­tará que aqui se re­giste a ma­ni­festa in­su­fi­ci­ência deste ou da­quele te­le­jor­na­lista des­ta­cado para a Ave­nida da Li­ber­dade ou para o Rossio (praça esta re­pe­ti­da­mente iden­ti­fi­cada como sendo o «epi­centro» da manif por uma jovem re­pórter apa­ren­te­mente con­di­ci­o­nada pelo vo­ca­bu­lário que a tra­gédia ha­vida no Japão pu­sera em moda), ou os de­sas­trados mo­vi­mentos de câ­mara que a dada al­tura al­guém ma­ne­java no Porto. Estas são pe­que­ninas coisas que pouco im­portam pe­rante o que é re­le­vante e pro­va­vel­mente enorme. Pelo que bem mais vale se­guir o se­cular con­selho de Apeles e não imitar o len­dário sa­pa­teiro que se pro­punha subir acima da san­dália.

 

A res­posta da TV

 

Porém, sempre se jus­ti­fica, e é mesmo ade­quado dizer-se que se impõe, falar de te­le­visão. Porque ela está aí, dia após dia, hora após hora, a ex­plicar-nos à sua ma­neira a vida e o mundo, a in­jectar con­ven­ci­mentos na nossa ca­be­cinha, a es­co­lher o que deve ser lem­brado en­quanto re­jeita o que quer que es­que­çamos. Consta que a TV já perdeu muito da sua in­fluência sobre as so­ci­e­dades que dela se ali­mentam há dé­cadas, que as ca­madas mais jo­vens já pouco lhe são sen­sí­veis, mas eu peço li­cença para du­vidar dessa no­tícia talvez feliz e para de­sejar ave­ri­guar se o cau­da­loso rio que corre nas redes so­ciais seria o mesmo sem a te­le­visão que ainda temos ou, di­zendo-o talvez me­lhor, que temos cada vez mais. De qual­quer modo, o certo é que foi neste quadro que a atenção me foi cha­mada por breves li­nhas de uma en­tre­vista pu­bli­cada no DN da pas­sada se­gunda-feira. O en­tre­vis­tado era Vítor de Sousa, homem do Te­atro, da Po­esia, da cul­tura enfim, e dis­sera ele, quando per­gun­tado acerca da ac­tual te­le­visão por­tu­guesa, que «es­tamos a criar mons­tros», que «a TV está a dar mons­tru­o­si­dades». Fui sen­sível à cla­reza da res­posta, aliás também co­ra­josa porque, bem se sabe, a te­le­visão é para Vítor de Sousa lugar de pos­sível tra­balho e, por­tanto, de sa­lário, sendo du­vi­doso que por lá todos te­nham exem­plar fair play e in­te­gral res­peito pela li­ber­dade de opi­nião des­fa­vo­rável. Mas o mais im­por­tante era que aquelas pa­la­vras im­pli­cavam um di­ag­nós­tico cor­recto, que me pa­rece alar­mante, que é lar­ga­mente par­ti­lhado ainda que apenas por uma ampla mi­noria, mas com que poucos se pre­o­cupam ver­da­dei­ra­mente e al­guns, exac­ta­mente os que mais tinha a obri­gação de se pre­o­cupar, não se pre­o­cupam nada. Com razão ou sem ela, ima­gino que para Vítor de Sousa a fa­bri­cação de mons­tros pela TV passa pela efec­tiva so­ne­gação de pro­dutos cul­tu­rais cuja fruição re­sul­taria em ci­da­dãos equi­li­brados porque sen­sí­veis a va­lores es­té­ticos e éticos que o te­le­lixo não for­nece: Te­atro, Mú­sica, Po­esia, ou­tras coisas assim, das que por efeito do quo­ti­diano bom­bar­de­a­mento te­le­vi­sivo são lar­ga­mente con­si­de­radas como ob­so­les­cên­cias sem prés­timo. A essas, de facto im­pres­cin­dí­veis na lis­tagem de apreços de um ci­dadão efec­ti­va­mente ci­vi­li­zado, dever-se-á acres­centar a per­ma­nente atenção cí­vica que o torne sen­sível ao dever de in­ter­venção na so­ci­e­dade como res­posta a in­jus­tiças e in­fâ­mias, pa­re­cendo-me que a Vítor de Sousa não pa­re­cerá ex­ces­siva esta adição. Ora, quanto a estas ne­ces­si­dades para a cons­trução de gente in­teira e sau­dável, não só a TV se re­cusa a sa­tis­fazê-las como res­ponde com a dis­tri­buição ao do­mi­cílio de an­tí­dotos e anal­gé­sicos: doses ma­ciças de me­di­o­cri­dades pe­lin­tras, es­tí­mulos ao fas­cínio pe­rante um te­cido de bis­bi­lho­tices reles que toma o lugar de in­for­mação acerca da so­ci­e­dade, ser­viços in­for­ma­tivos cui­da­do­sa­mente se­lec­ci­o­nados e di­rec­ci­o­nados para que nem por um mo­mento se du­vide de que o mo­delo de so­ci­e­dade em que vi­vemos é o me­lhor dos pos­sí­veis. E desta ca­deia de pro­dução de­certo todos os dias saem novos mons­tros.



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