Comentário

Praça Al-Tahir, Cairo, 2011

João Ferreira

Image 7120

«O que se passa no Egipto é mais do que uma re­volta mas (ainda) menos do que uma re­vo­lução». Assim nos des­creve o egípcio Samir Amin o pro­cesso em curso no seu país, ali a poucos me­tros da praça Al-Tahir, onde du­rante vá­rios dias cen­tenas de mi­lhares de pes­soas mar­caram pre­sença inin­ter­rupta, exi­gindo o fim do re­gime de Mu­barak.

Mas é de «re­vo­lução» que todos falam nos dias que correm. Nas ruas, as ma­ni­fes­ta­ções pros­se­guem exi­gindo que se cumpra a «re­vo­lução» e re­cu­sando qual­quer passo atrás. Como em qual­quer re­vo­lução, a ju­ven­tude tem um papel de­ter­mi­nante em todo o pro­cesso. São jo­vens, muito jo­vens, a mai­oria dos que em­pu­nham car­tazes, agitam ban­deiras na­ci­o­nais e gritam pa­la­vras de ordem, de­sa­fi­ando a proi­bição de ma­ni­fes­ta­ções (re­cen­te­mente de­cre­tada pelo Con­selho Su­pe­rior das Forças Ar­madas) e a sua aper­tada vi­gi­lância por parte do exér­cito, om­ni­pre­sente. Como em qual­quer re­vo­lução, o pro­cesso em curso no Egipto faz-se por al­guém e contra al­guém; os pri­meiros têm muito a ga­nhar, os se­gundos muito a perder e por isso re­agem, pro­cu­rando re­verter o pro­cesso ou, pelo menos, contê-lo dentro de li­mites con­si­de­rados «acei­tá­veis». Como em qual­quer re­vo­lução, ela serve de re­fe­rência ao correr do tempo: nas con­versas, ou­vimos amiúde as ex­pres­sões «antes da re­vo­lução» e «agora, de­pois da re­vo­lução».

Du­rante as mais de três dé­cadas do re­gime de Hosni Mu­barak, o Egipto cons­ti­tuiu uma peça-chave do do­mínio im­pe­ri­a­lista no Médio Ori­ente e no Norte de África. O re­gime serviu os in­te­resses eco­nó­micos e ge­o­es­tra­té­gicos dos EUA, dos seus ali­ados e da União Eu­ro­peia, que agora hi­po­cri­ta­mente clamam por li­ber­dade e de­mo­cracia neste e nou­tros países da re­gião. A UE, desde há quase duas dé­cadas, tem na cha­mada Par­ceria Euro-me­di­ter­râ­nica um ins­tru­mento cen­tral de do­mínio eco­nó­mico e ge­o­po­lí­tico da re­gião. Esta par­ceria as­senta nos cha­mados Acordos de As­so­ci­ação, que pre­vêem, entre ou­tros as­pectos, a cri­ação de zonas de livre co­mércio, a li­ber­dade de cir­cu­lação de mer­ca­do­rias e de ca­pi­tais e o di­reito de es­ta­be­le­ci­mento e de pres­tação de ser­viços. Em 2004, a UE as­sinou um destes acordos com o Egipto. Na al­tura, e pos­te­ri­or­mente em di­versas oca­siões, vá­rias or­ga­ni­za­ções egíp­cias de­nun­ci­aram as vi­o­la­ções dos di­reitos hu­manos no país, a falta de li­ber­dade, a exis­tência de mi­lhares de pri­sões ile­gais e a prá­tica de tor­tura. De­nún­cias con­ve­ni­en­te­mente ig­no­radas, ainda hoje.

A po­lí­tica de re­la­ções ex­ternas do re­gime sempre foi in­dis­so­ciável dos de­sen­vol­vi­mentos no plano in­terno: da con­cen­tração ca­pi­ta­lista, do acen­tuar das de­si­gual­dades e cli­va­gens no plano so­cial, da res­trição das li­ber­dades fun­da­men­tais, da re­pressão, da au­sência de de­mo­cracia.

Este é um as­pecto cla­ra­mente apre­en­dido pelo mo­vi­mento re­vo­lu­ci­o­nário de­mo­crá­tico que ir­rompeu no país no início do ano: a as­so­ci­ação es­treita entre a mi­séria em que vive a es­ma­ga­dora mai­oria do povo, o ca­rácter des­pó­tico do re­gime e a po­lí­tica de sub­missão, no plano in­ter­na­ci­onal, aos in­te­resses dos EUA e de Is­rael. Por isso o mo­vi­mento tem um claro cariz anti-im­pe­ri­a­lista. A re­vo­lução por que luta é uma re­vo­lução de­mo­crá­tica e na­ci­onal.

Este não é um mo­vi­mento ju­venil, mesmo se a ju­ven­tude tem nele um papel de­ter­mi­nante. As suas raízes en­con­tram-se na luta co­ra­josa e per­sis­tente de muitos, ao longo dos úl­timos anos, mesmo se foi a partir dos acon­te­ci­mentos na Tu­nísia, no início deste ano, que tudo ga­nhou uma di­mensão ines­pe­rada e avas­sa­la­dora. Das ma­ni­fes­ta­ções de so­li­da­ri­e­dade com a Pa­les­tina, im­pul­si­o­nadas pelo Par­tido Co­mu­nista do Egipto no início da dé­cada, às greves dos tra­ba­lha­dores da in­dús­tria têxtil em 2007 (nas quais as mu­lheres ti­veram um des­ta­cado papel), de­pois alar­gadas a ou­tros sec­tores em 2008, 2009 e 2010, e nas quais os co­mu­nistas vol­taram a ter uma acção fun­da­mental, tudo isto con­tri­buiu de­ci­si­va­mente para se chegar ao ac­tual pa­tamar de luta. Este não foi um fe­nó­meno que saltou do mundo «vir­tual» das redes so­ciais da In­ternet para as ruas, mesmo se estas redes ti­veram um papel im­por­tante, numa dada fase do pro­cesso, no re­forço da ampla frente so­cial de luta contra o re­gime e no seu alar­ga­mento a certas ca­madas so­ciais.

Mas como avisa Samir Amin, para o im­pe­ri­a­lismo «o Egipto é um país de­ma­siado im­por­tante para que se per­mita que seja um país de­mo­crá­tico», já que, a sê-lo, só po­deria se­guir uma via de es­querda anti-im­pe­ri­a­lista.

O delta do Nilo é hoje palco de uma luta in­tensa, di­fícil e com­plexa, que ine­vi­ta­vel­mente se pro­lon­gará ainda por muito tempo.



Mais artigos de: Europa

Protesto histórico

Cerca de 500 mil pes­soas des­fi­laram, no sá­bado, 24, du­rante mais de quatro horas no centro de Lon­dres contra a po­lí­tica eco­nó­mica e so­cial do go­verno con­ser­vador-li­beral, li­de­rado por David Ca­meron.

Merkel derrotada pelos Verdes

O partido de Merkel perdeu o estado de Bade-Wurtemberg (Sudoeste da Alemanha) para os Verdes, nas eleições regionais de domingo, 27, um dia depois das manifestações antinucleares que reuniram centenas de milhares de pessoas em vários pontos do país. Os Verdes obtiveram perto de...

Franceses penalizam Sarkozy

O partido do presidente Nicolas Sarkozy perdeu, no domingo, a segunda volta das eleições regionais em França para os socialistas, obtendo 18,89 por cento dos votos contra 35 por cento para o PS. A Frente de Esquerda, onde se integra o PCF, registou uma subida eleitoral, elegendo mais de uma centena...