Medicina, terapias e poder: ciência e historicismo

Luís Coelho

Sa­bi­da­mente, é quase inútil pro­curar en­con­trar uma ordem ra­ci­onal no dis­curso his­tó­rico. A His­tória é feita de factos, mas qual­quer ten­ta­tiva de os ca­te­go­rizar conduz-nos co­mum­mente a um re­la­ti­vismo ines­ca­pável, o qual apela a um con­junto in­trin­cado de re­la­ções entre os ho­mens, as fac­ções e os in­te­resses.

No do­mínio da His­tória do corpo e da me­di­cina, a pre­sença de mitos e con­tra­di­ções leva a que o ne­ces­sário ob­jec­ti­vismo re­que­rido ao tra­balho de um his­to­ri­ador pro­fis­si­onal não passe de um de­sejo trans­fi­gu­rado em qui­mera. A ver­dade é que a his­tória das re­la­ções mé­dicas e das te­ra­pias não se revê sempre numa ne­ces­sária ac­tu­ação clí­nica ob­jec­tiva; antes é palco de uma com­plexa ma­triz de re­la­ções de poder, as quais foram sempre es­ta­be­le­cidas entre os mé­dicos e os seus do­entes, com vista à cri­ação de uma au­to­ri­dade pa­ter­na­lista de pos­sí­veis co­no­ta­ções «má­gicas» que per­mi­tisse a ma­nu­tenção de de­ter­mi­nado es­ta­tuto.

Assim como Marx in­ter­pretou as li­ga­ções entre os ho­mens como re­la­ções de ex­plo­ração de sig­ni­fi­cado clas­sista, também Mi­chel Fou­cault, fi­ló­sofo do sé­culo XX, in­ter­pretou a his­tória do corpo, es­pe­ci­al­mente da lou­cura e da se­xu­a­li­dade, en­quanto palco de re­la­ções de poder que vi­savam o con­trolo so­cial do «outro» por meio da pres­crição de uma au­to­ri­dade mé­dica. Assim sendo, ao longo da his­tória, os mé­dicos e as suas te­ra­pias foram pre­gando o seu au­to­ri­ta­rismo, muitas vezes com re­curso a te­ra­pias que vi­riam mais tarde a re­velar-se como «pseudo-ci­en­tí­ficas», sendo que estas não podem deixar de nos fazer pensar em muitas das te­ra­pias «mís­tico-dog­má­ticas» uti­li­zadas por te­ra­peutas do «bem-estar» em pleno tempo pre­sente (al­gumas delas, como certas psi­co­te­ra­pias e a pró­pria psi­ca­ná­lise, pos­suem ac­tu­al­mente até um certo cunho de res­pei­ta­bi­li­dade, até porque pro­põem uma visão ho­lís­tica do homem – daí a «mís­tica» que re­feri – a qual con­cebe o do­ente ao invés da do­ença – coisa que a me­di­cina ca­nó­nica ac­tual não faz, apre­sen­tando-se esta de­ma­si­a­da­mente con­ver­tida ao di­ag­nós­tico «lo­ca­li­za­ci­o­nista» bi­o­me­câ­nico e à men­su­ra­bi­li­dade ca­pi­ta­lista –, mas nem por isso deixam de pres­crever uma forma de do­mínio do do­ente...).

A psi­ca­ná­lise e a pró­pria psi­qui­a­tria fazem apelo ao tempo ainda bas­tante re­cente em que muitos par­ti­dá­rios do So­ci­a­lismo, vistos como pe­ri­gosos para o sis­tema ca­pi­ta­lista, eram di­ag­nos­ti­cados como loucos e en­clau­su­rados em ins­ti­tui­ções onde pu­dessem ter a mí­nima in­fluência so­cial pos­sível. As suas in­ter­pre­ta­ções so­ci­o­ló­gicas po­de­riam ser fa­cil­mente in­ter­pre­tadas como de­lí­rios, sendo mais fácil acre­ditar que o louco seria este ser mo­vido de «cons­ci­ência so­cial» do que todas as ou­tras mai­o­rias sau­dá­veis (que, na re­a­li­dade po­de­riam so­frer da, para uti­lizar as pa­la­vras de Arno Gruen, «lou­cura da nor­ma­li­dade»...). Este tempo re­mete para uma re­acção «re­vo­lu­ci­o­nária» a toda esta ins­ti­tu­ci­o­na­li­zação com­pul­siva, a que se deu o nome de Anti-psi­qui­a­tria, a qual per­mitiu re­velar muitas das atro­ci­dades que se ope­ravam nos asilos e hos­pi­tais psi­quiá­tricos.

 

Mar­xismo e psi­ca­ná­lise

 

Não é pre­ciso ser muito cla­ri­vi­dente para ver a se­me­lhança entre o tema e os tí­tulos das obras de Mi­chel Fou­cault «A his­tória da lou­cura na idade clás­sica» (1961) e «O poder psi­quiá­trico» (re­la­tivo a 1973-1974). De facto, este in­te­lec­tual (cu­ri­o­sa­mente psi­có­logo, psi­ca­na­lista, ho­mos­se­xual, e de es­querda...) é es­pe­ci­al­mente re­le­vante para a nossa dis­cussão, e também para a te­má­tica do «re­la­ti­vismo», ainda mais porque a sua obra tem sido vastas vezes in­ter­pre­tada como exem­plar da bar­ganha in­te­lec­tual...

E, fa­zendo um exer­cício de com­pa­ração per­ti­nente, é um facto que também como in­tru­jões têm sido vistos muitas vezes Hegel e Marx, assim como os di­fe­rentes fi­ló­sofos con­tem­po­râ­neos da pós-mo­der­ni­dade (como Der­rida ou Rorty). Na re­a­li­dade, para muitos «ci­en­tistas clás­sicos», estes ho­mens «his­to­ri­cistas» (para uti­lizar o termo de Karl Popper) re­metem para um tipo de re­la­ti­vismo que faz uso de as­ser­ções fa­la­ci­osas e pouco ri­go­rosas. E se Marx tem sido muitas vezes visto como um falso pro­feta ou um falso ci­en­tista, também Fou­cault tem sido visto por muitos como o pai da maior vi­ga­rice in­te­lec­tual do séc. XX (o pós-mo­der­nismo). Cu­ri­o­sa­mente, o mar­xismo e a psi­ca­ná­lise eram pre­ci­sa­mente o ter­reno de eleição de Karl Popper, para o qual eles tra­tavam de pseu­do­ci­ên­cias ads­tritas ao «re­la­ti­vismo dog­má­tico». E se, por um lado, o rigor ci­en­tí­fico é ne­ces­sário para a sempre im­por­tante de­mar­cação entre te­rapia le­gí­tima e pseu­do­ci­ência, por outro lado, não tenho dú­vidas de que a ci­ência «clás­sica» possui certas li­mi­ta­ções na forma como con­cebe tanto o mar­xismo (que é auto-evi­dente em muitos dos seus pres­su­postos) como certas re­a­li­dades prag­má­ticas mais fa­cil­mente com­pre­en­sí­veis pela «es­cala do olhar» qua­li­ta­tiva da «ci­ência pós-mo­derna».

Para além disso, no­temos que o re­la­ti­vismo res­pei­tante às te­ra­pêu­ticas que está em questão não é de forma al­guma de­fen­dido pelos pró­prios mé­todos «his­tó­ricos» em aná­lise. Antes pelo con­trário! Não con­fun­damos, por­tanto, o re­la­ti­vismo fac­tual das te­ra­pêu­ticas (este com ca­rácter ne­ga­tivo, porque re­leva da pseu­do­ci­ência e da pos­sível fraude) com o «re­la­ti­vismo» do mé­todo que visa a com­pre­ensão his­tó­rica dessas te­ra­pêu­ticas, o qual é con­dição da com­pre­ensão de certas re­a­li­dades mais «sócio-hu­manas». Por­tanto, pelo menos por agora, en­quanto a ci­ência clás­sica ainda não possui o labor con­tex­tual su­fi­ci­en­te­mente in­clu­sivo das ci­ên­cias ditas «so­ciais», vamos tentar aceitar al­gumas das evi­dên­cias que o tal «his­to­ri­cismo» nos dá, prin­ci­pal­mente na forma tão clara como as te­ra­pêu­ticas psi­co­fí­sicas pa­recem ecoar um rol de re­la­ções de sub­missão que se es­ta­be­lecem entre os ho­mens, estas não muito di­fe­rentes das re­la­ções ex­plo­ra­tó­rias que iden­ti­ficam o ani­ma­lismo da so­ci­e­dade ca­pi­ta­lista e que foram es­tu­dadas pelo «his­to­ri­cismo mar­xiano». E já agora, só para com­plicar e para manter a ana­logia que já ví­nhamos a re­a­lizar, devo acres­centar que aceitar que o mé­todo do «So­ci­a­lismo ci­en­tí­fico» de Marx é dado à es­pe­cu­lação his­to­ri­cista, re­la­ti­vista e pós-mo­derna não deixa de ser pa­ra­doxal, visto que foi sempre sua in­tenção iden­ti­ficar al­gumas das «leis da His­tória», as quais pa­recem ser tão ine­xo­rá­veis, tanto que até são pa­ra­lelas ao evo­lu­ci­o­nismo bi­o­ló­gico de Darwin, que não podem deixar de se apro­ximar de um certo «ob­jec­ti­vismo», pró­prio das ci­ên­cias exactas.



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