Correspondência de Marx e Engels

Engels a Conrad Schmidt (em Berlim) (II Parte)

Lon­dres, 27 de Out[ubro] de 1890

Neste par de in­di­ca­ções sobre a minha con­cepção da re­lação da pro­dução com o co­mércio de mer­ca­do­rias e de ambos com o co­mércio de di­nheiro res­pondi já [ver Avante!, 20-4-2011] , no fundo, à sua per­gunta sobre o ma­te­ri­a­lismo his­tó­rico em geral. A coisa apre­ende-se de modo mais fácil do ponto de vista da di­visão do tra­balho. A so­ci­e­dade en­gendra certas fun­ções co­muns, que não pode dis­pensar. As pes­soas no­me­adas para isso formam um se­gundo ramo da di­visão do tra­balho no in­te­rior da so­ci­e­dade. Ad­quirem com isso in­te­resses par­ti­cu­lares também face aos seus man­dantes, au­to­no­mizam-se face a eles e - eis o Es­tado. E então passa-se de modo se­me­lhante ao que [se passa] com o co­mércio de mer­ca­do­rias e, mais tarde, com o co­mércio de di­nheiro: o novo poder au­tó­nomo tem, com efeito, grosso modo, que se­guir o mo­vi­mento da pro­dução, mas reage também - por causa da au­to­nomia re­la­tiva que lhe é ine­rente, quer dizer, que foi uma vez trans­fe­rida para ele e que gra­du­al­mente se con­tinua a de­sen­volver - de novo sobre as con­di­ções e o curso da pro­dução. É uma acção re­cí­proca de duas forças de­si­guais: o mo­vi­mento eco­nó­mico, de um lado, e o novo poder po­lí­tico, que as­pira o mais pos­sível à au­to­nomia e que, uma vez es­ta­be­le­cido, fica do­tado também de um mo­vi­mento pró­prio; o mo­vi­mento eco­nó­mico, grosso modo, vem ao de cima, mas tem de so­frer também uma re­tro­acção do mo­vi­mento po­lí­tico por ele pró­prio criado e do­tado de re­la­tiva au­to­nomia: do mo­vi­mento, por um lado, do poder do Es­tado, por outro lado, do da opo­sição en­gen­drada ao mesmo tempo que ele. Tal como, no mer­cado de di­nheiro, o mo­vi­mento do mer­cado in­dus­trial se re­flecte e se in­verte na­tu­ral­mente - grosso modo e com as re­servas acima in­di­cadas -, também na luta entre go­verno e opo­sição se re­flecte a luta das classes já an­te­ri­or­mente exis­tentes e em luta - mas igual­mente de modo in­ver­tido - não já di­rec­ta­mente mas in­di­rec­ta­mente, não como luta de classes mas como luta por prin­cí­pios po­lí­ticos, e de um modo tão in­ver­tido que foram pre­cisos mi­lhares de anos até que nós viés­semos a dar com a coisa.

A re­tro­acção do poder do Es­tado sobre o de­sen­vol­vi­mento eco­nó­mico pode ser de três es­pé­cies: ela pode pro­cessar-se na mesma di­recção (e, então, vai tudo mais rá­pido), pode ir em sen­tido con­trário (e, então, hoje em dia, em cada grande povo, com o tempo, tudo fica es­tra­gado), ou ela pode cortar ao de­sen­vol­vi­mento eco­nó­mico de­ter­mi­nadas di­rec­ções e pres­crever-lhe ou­tras (este caso reduz-se, fi­nal­mente, a um dos dois an­te­ri­ores). É claro, porém, que nos casos II e III, o poder po­lí­tico pode causar grandes danos ao de­sen­vol­vi­mento eco­nó­mico e en­gen­drar dis­si­pa­ções em massa de força e de ma­te­rial.

Acres­cente-se ainda o caso da con­quista e ani­qui­la­mento brutal de re­cursos eco­nó­micos, por que, em certas cir­cuns­tân­cias, an­te­ri­or­mente, se podia ar­ruinar todo um de­sen­vol­vi­mento eco­nó­mico local e na­ci­onal. Este caso tem hoje, a maior parte das vezes, efeitos opostos, pelo menos entre os grandes povos: o ven­cido, muitas vezes, com o tempo ganha mais, eco­nó­mica, po­lí­tica e mo­ral­mente, do que o ven­cedor.

Com o Di­reito [Jus], passa-se de modo se­me­lhante: logo que se torna pre­cisa a nova di­visão do tra­balho que cria os ju­ristas de pro­fissão, abre-se por sua vez, um novo do­mínio, au­tó­nomo, que, em toda a sua de­pen­dência geral da pro­dução e do co­mércio, possui, con­tudo, também uma ca­pa­ci­dade par­ti­cular de re­acção contra esses do­mí­nios. Num Es­tado mo­derno, o Di­reito [Recht] tem, não apenas que cor­res­ponder à si­tu­ação eco­nó­mica geral, que ser ex­pressão dela, mas também que ser uma ex­pressão em si co­nexa, que não se es­bo­fe­teie a si pró­pria por con­tra­di­ções in­ternas. E, para con­se­guir isso, a fi­de­li­dade do re­flexo [Abs­pi­e­ge­lung] das re­la­ções eco­nó­micas é feita cada vez mais em fa­nicos. E isto tanto mais quanto é raro ocorrer que um có­digo seja a ex­pressão abrupta, não ado­çada, não fal­si­fi­cada, da do­mi­nação de uma classe: isto seria mesmo con­trário já ao «con­ceito do Di­reito». O con­ceito do Di­reito, puro, con­se­quente, da bur­guesia re­vo­lu­ci­o­nária de 1792-1796 está já fal­si­fi­cado, sob muitos as­pectos, no Code Na­po­léon (4), e na me­dida em que aí está cor­po­ri­zado, tem di­a­ri­a­mente que ex­pe­ri­mentar toda a es­pécie de ate­nu­a­ções por causa do poder cres­cente do pro­le­ta­riado. O que não im­pede o Code Na­po­léon de ser o có­digo que, em todas as partes do mundo, serve de base a todas as co­di­fi­ca­ções. Assim, o curso de «de­sen­vol­vi­mento do Di­reito» con­siste apenas, em grande parte, em que, pri­meiro, se pro­cura eli­minar as con­tra­di­ções que se pro­duzem a partir da tra­dução ime­diata das re­la­ções eco­nó­micas em prin­cí­pios ju­rí­dicos e es­ta­be­lecer um sis­tema ju­rí­dico har­mo­nioso, e em que, de­pois, a in­fluência e o cons­tran­gi­mento do ul­te­rior de­sen­vol­vi­mento eco­nó­mico rompe sempre de novo este sis­tema e en­reda-o em novas con­tra­di­ções (de mo­mento, falo aqui apenas do Di­reito Civil).

O re­flexo [Wi­ders­pi­e­ge­lung] de re­la­ções eco­nó­micas em prin­cí­pios ju­rí­dicos é ne­ces­sa­ri­a­mente um [re­flexo] que igual­mente se põe de ca­beça para baixo [auf dem Kopf]: pro­cessa-se sem que aquele que age ganhe cons­ci­ência dele; o ju­rista ima­gina que opera com prin­cí­pios apri­o­rís­ticos, en­quanto eles são apenas re­flexos [Re­flexe] eco­nó­micos - assim, fica tudo de ca­beça para baixo. E pa­rece-me evi­dente que esta in­versão [Um­keh­rung] - que, en­quanto não é co­nhe­cida, cons­titui aquilo a que nós cha­mamos visão ide­o­ló­gica [ide­o­lo­gische Ans­chauung] - re­troage, por seu lado, de novo, sobre a base [Basis] eco­nó­mica e pode, dentro de certos li­mites, mo­di­ficá-la. A base [Grun­dlage] do di­reito su­ces­sório - pres­su­pondo um igual es­tádio de de­sen­vol­vi­mento da fa­mília - é uma [base] eco­nó­mica. Apesar disso, torna-se di­fícil de­mons­trar que, por exemplo, em In­gla­terra, a ab­so­luta li­ber­dade de testar, em França, a sua forte li­mi­tação em todos os por­me­nores, têm apenas causas eco­nó­micas. Mas, de um modo muito sig­ni­fi­ca­tivo, re­tro­agem ambas sobre a eco­nomia pelo facto de in­fluírem sobre a re­par­tição da for­tuna.

 

(con­clui num pró­ximo nú­mero)

 (4) En­gels en­tende por Code Na­po­léon (Có­digo de Na­po­leão) todo o sis­tema de di­reito bur­guês, re­pre­sen­tado pelos cinco có­digos (civi, civil-pro­ces­sual, co­mer­cial, penal, e pro­ces­sual-penal), adop­tados sob Na­po­leão I nos anos de 1804 a 1810. Estes có­digos foram im­plan­tados nas re­giões da Ale­manha Oci­dental e Sul-Oci­dental con­quis­tadas pela França de Na­po­leão e con­ti­nu­aram em vigor na pro­víncia do Reno mesmo de­pois da ane­xação desta pela Prússia em 1815.

 

Se­lecção: Fran­cisco Melo
Tra­dução: José Ba­rata-Moura



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