Os dois únicos críticos gastronómicos de Portugal

Francisco Mota

Para José Qui­tério e David Lopes Ramos

Amigos

Este nosso Por­tugal está tão pobre em tantas coisas, na mai­oria das coisas, que desde há algum tempo tinha na ca­beça es­crever-vos este texto, que deve ser en­ten­dido desde o prin­cípio como uma ho­me­nagem aos dois únicos crí­ticos gas­tro­nó­micos que Por­tugal já teve. Há muita gente a es­cre­vi­nhar sobre res­tau­rantes, mas a in­fi­nita mai­oria deles são como o de­sa­pa­re­cido Luís Sttau Mon­teiro, que es­crevia sem cri­tério, sem es­tudo, sem co­nhe­ci­mento, mas que pelo menos levou muita gente a res­tau­rantes porque nos anos 60-70 o Diário de Lisboa era um re­fe­rente obri­ga­tório, onde es­tava tanta gente boa e tão bons pro­fis­si­o­nais. Cito apenas dois como exemplo Mário Cas­trim e Jo­a­quim Be­nite.

Tudo co­meçou quando nas pá­ginas do Ex­presso apa­rece um tal Zé Qui­tério que co­meça a fazer crí­tica de res­tau­rantes, com fun­da­mento, co­nhe­ci­mento e rigor. Ra­pi­da­mente se trans­formou numa bí­blia sa­grada para quem gos­tava de comer e beber bem. Além disso as suas crí­ticas eram e são di­dác­ticas. Não se diz “es­tava bom“ diz-se por que “es­tava bom“. Desfez mitos e pôs na pri­meira linha pe­quenos res­tau­rantes de todo o País, mesmo da­quelas partes aban­do­nadas pelos go­vernos e pelas pes­soas. Passou a ser o exemplo vivo do que é ser crí­tico e como cri­ticar. Apesar disso con­ti­nu­amos a ler ou­tros “crí­ticos“ cujas cró­nicas só me es­pantam pela co­ragem dos seus au­tores em pôr o nome por baixo. Su­ponho que todos temos que ga­nhar a vida.

Além de passar a ser jus­ti­fi­ca­da­mente o papa da crí­tica de res­tau­rantes, Zé Qui­tério co­meçou a es­crever li­vros e a di­rigir uma co­lecção de li­vros sobre gas­tro­nomia. Um dos li­vros ali pu­bli­cados é o do seu grande amigo e co­la­bo­rador do Avante!, já fa­le­cido, José La­ba­redas. Vale a pena ler com atenção o “Co­ruche à mesa”.

O David Lopes Ramos co­meçou o seu ca­mino gas­tro­nó­mico no Diário, onde pu­bli­cava uma pá­gina por se­mana com bo­ca­di­nhos de tudo: re­ceitas, ci­ta­ções de au­tores por­tu­gueses onde a co­mida era im­por­tante, etc.. De­pois no Pú­blico se­guindo a linha do Zé Qui­tério, mas sem o co­piar, es­creveu du­rante anos sobre gas­tro­nomia, res­tau­rantes e vi­nhos. Exi­gente con­sigo pró­prio, tornou-se me­re­cedor do aplauso da­queles que lêem estes es­critos, e en­sinou que o mundo do comer e beber não é uma coisa que se tem de fazer duas ou três vezes ao dia, mas sim algo mais com­plexo, a que cha­maria “Arte“. Com ele tive opor­tu­ni­dade de comer e falar longas horas e dis­cutir, con­cordar, não con­cordar, em tantas coisas que me é di­fícil enu­merar, sempre com um sor­riso nos lá­bios e a sin­ce­ri­dade por di­ante

Dizem-me, David, que nos dei­xaste. Eu estou a mais de 10 000Kms de Por­tugal, mas não pre­ciso de por­me­nores, nem ex­pli­ca­ções: sei que é men­tira. Tu não nos podes ter dei­xado, porque esse Por­tugal fi­caria ainda mais pobre. Tenho a cer­teza que foste vi­sitar o teu ad­mi­rado ca­talão Santi San­ta­maria, de quem tanto fa­lámos, e até trouxe para estas longes terras a tua cró­nica-crí­tica pu­bli­cada no "Fugas" do dia 29 de Ja­neiro deste ano, sobre o jantar que Santi San­ta­maria ce­le­brou no Al­garve, dias antes, para a voltar a ler. Quem te diria a ti e a todos que este génio iria de­sa­pa­recer no seu novo res­tau­rante de Sin­ga­pura, menos de um mês de­pois, só com 52 anos. Por­tanto a única ex­pli­cação ló­gica é que foste falar com ele e um destes dias le­remos a tua cró­nica.

Mas, se fosse ver­dade, gos­tava de te dizer ci­tando Ca­mões “e se vês que pode me­recer-te dal­guma coisa a dor que nos ficou“, peço-te que vás vendo aí onde es­ti­veres onde se come e bebe bem. Assim quando formos ao teu en­contro, já não temos que estar à pro­cura dum bom sítio. Tu já o terás en­con­trado.

Dis­seste uma vez que es­cre­vias os teus textos pen­sando no que pen­saria o Qui­tério deles, porque se es­creve sempre para al­guém. Pois quero dizer-te, amigo, que este texto foi por mim es­crito, com au­to­ri­zaçao do Zé Qui­tério que dou por re­ce­bida, a pensar em ti.



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