Lénine, a democracia e o Estado

Filipe Diniz

Co­me­çarei por dizer que me seria muito menos di­fícil or­ga­nizar esta in­ter­venção sob o tema geral destas con­versas, ou seja, Lé­nine e a de­mo­cracia, do que sob o tema de hoje, A de­mo­cracia li­berta-se.

E isto por uma razão teó­rica bas­tante sim­ples: porque para Lé­nine, como antes para Marx e En­gels, o pro­cesso da eman­ci­pação hu­mana segue um ca­minho que, a certo passo do seu texto sobre «O Es­tado e a Re­vo­lução», Lé­nine sin­te­tiza da se­guinte forma: «quanto mais com­pleta for a de­mo­cracia mais pró­ximo está o mo­mento em que se tor­nará des­ne­ces­sária. Quanto mais de­mo­crá­tico for o Es­tado, […] mais de­pressa co­me­çará a ex­tin­guir-se todo o Es­tado».

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Ou seja, a luta pelo so­ci­a­lismo – que é a luta pela su­pressão da ex­plo­ração ca­pi­ta­lista e de toda vi­o­lência or­ga­ni­zada e sis­te­má­tica através da qual esta exerce o seu do­mínio, de toda a vi­o­lência sobre os ho­mens em geral – conduz ne­ces­sa­ri­a­mente à su­pressão do Es­tado. E, para os mar­xistas, a de­mo­cracia não é mais do que uma das formas de or­ga­ni­zação do Es­tado.

Mas estas ob­ser­va­ções não sig­ni­ficam também que deixe fazer sen­tido a ideia de que, com Lé­nine, a de­mo­cracia li­berta-se. Li­berta-se das peias for­mais da de­mo­cracia bur­guesa. Ad­quire uma li­gação ao fazer, à prá­tica con­creta do pro­le­ta­riado no pro­cesso de trans­for­mação da so­ci­e­dade, no tra­balho quo­ti­diano de quem tomou nas suas mãos a re­a­li­zação do seu pró­prio des­tino. É parte in­te­grante do es­pan­toso mo­vi­mento cri­ador que, num cur­tís­simo pe­ríodo de tempo, trans­formou ra­di­cal­mente a Rússia feudal e des­pó­tica na Re­pú­blica dos so­vi­etes.

É essa com­pre­ensão da de­mo­cracia como in­ter­venção di­recta e prá­tica das massas que de­vemos ter sempre pre­sente, hoje também, no Por­tugal da Re­vo­lução de Abril. É à luz dessa com­pre­ensão que po­demos afirmar que a Re­forma Agrária nos campos do Sul foi a mais de­mo­crá­tica acção co­lec­tiva da nossa his­tória, e que a apro­vação da Lei Bar­reto, le­gí­tima no quadro formal da As­sem­bleia da Re­pú­blica, foi uma das mais an­ti­de­mo­crá­ticas ex­pres­sões de vi­o­lência e opressão de classe do negro pe­ríodo da contra-re­vo­lução.

 

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O con­tri­buto de Marx, En­gels e Lé­nine para a com­pre­ensão do papel do Es­tado e para a ca­rac­te­ri­zação da sua evo­lução no quadro do de­sen­vol­vi­mento das di­versas for­ma­ções so­ciais é um dos as­pectos mais va­li­osos do ma­te­ri­a­lismo his­tó­rico.

É um imenso com­bate teó­rico e ide­o­ló­gico contra as con­cep­ções ide­a­listas acerca da or­ga­ni­zação da so­ci­e­dade, sobre a de­mo­cracia e a li­ber­dade en­quanto va­lores ideais e abs­tractos. Um pro­lon­gado com­bate, em que não virá a des­pro­pó­sito, aliás, re­cordar que muito antes da Fu­kuyama, já Hegel con­sa­grava a mo­nar­quia dos Habs­burgos como a forma per­feita de go­verno e, por­tanto, como o fim da his­tória. A estas con­cep­ções ide­a­listas, que Feu­er­bach pros­segue, con­tra­põem Marx e En­gels uma crí­tica cer­rada das ins­ti­tui­ções do es­tado bur­guês e do par­la­men­ta­rismo.

Em pri­meiro lugar, iden­ti­fi­cando a na­tu­reza do Es­tado, in­de­pen­den­te­mente das formas que as­sume, como ins­tru­mento da classe do­mi­nante e, por­tanto, como di­ta­dura. De­pois, de­nun­ci­ando os li­mites e a na­tu­reza de classe da de­mo­cracia bur­guesa. Afir­mando, contra Feu­er­bach, que «todas as lutas no seio do Es­tado, entre a de­mo­cracia, a aris­to­cracia e a mo­nar­quia, a luta pelo di­reito de voto, não são mais do que as formas ilu­só­rias em que são tra­vadas as lutas reais entre as di­fe­rentes classes entre si».

E enun­ci­ando o prin­cípio fun­da­mental de que a luta das classes «que as­piram ao do­mínio, como é o caso do pro­le­ta­riado […] têm de con­quistar pri­meiro o poder po­lí­tico», e exercê-lo se­gundo a sua pró­pria pers­pec­tiva de classe. No Ma­ni­festo de 1848, a pa­lavra de­mo­cracia é in­tei­ra­mente as­su­mida por Marx e En­gels: «A re­vo­lução ope­rária é a pas­sagem do pro­le­ta­riado a classe do­mi­nante, a con­quista da de­mo­cracia pela luta».

Como sa­bemos, não poupam nas pa­la­vras, no­me­a­da­mente quando se trata de de­nun­ciar o par­la­men­ta­rismo. Mas ana­lisam com o maior rigor a evo­lução da cor­re­lação de forças no in­te­rior das ins­ti­tui­ções e a evo­lução do papel que estas as­sumem. Nas «Lutas de classes em França» Marx des­creve a sequência, após a Re­vo­lução de Fe­ve­reiro de 1848, da eleição por su­frágio uni­versal de uma As­sem­bleia Na­ci­onal contra-re­vo­lu­ci­o­nária em Maio, de Luís Bo­na­parte pre­si­dente em De­zembro, e da abo­lição, em 1850, do su­frágio uni­versal. E nesse texto, como de­pois no «18 de Bru­mário de Luís Bo­na­parte», ana­lisa com ex­tremo de­talhe o com­por­ta­mento das forças po­lí­ticas na As­sem­bleia Na­ci­onal e a forma como iludem, ou traem, as lutas reais entre as di­fe­rentes classes entre si já aqui re­fe­ridas.

Mas si­mul­ta­ne­a­mente travam um duro com­bate contra as con­cep­ções anar­quistas, que re­cusam re­co­nhecer nas ins­ti­tui­ções bur­guesas um ter­reno de com­bate. É Marx, na sua lin­guagem vi­go­rosa, quem o diz: «uti­lizar mesmo a po­cilga do par­la­men­ta­rismo bur­guês, so­bre­tudo quando ma­ni­fes­ta­mente não existe uma si­tu­ação re­vo­lu­ci­o­nária, sem aban­donar a crí­tica pro­le­tária e re­vo­lu­ci­o­nária do par­la­men­ta­rismo».

 

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Lé­nine é, em todos os do­mí­nios, um ma­gis­tral con­ti­nu­ador de Marx e En­gels. De­sen­volve a aná­lise mar­xista do papel do Es­tado no quadro do ca­pi­ta­lismo mo­no­po­lista, pros­segue e am­plia a crí­tica das con­cep­ções bur­guesas li­be­rais e ide­a­listas da de­mo­cracia e do par­la­men­ta­rismo: «o par­la­men­ta­rismo bur­guês não eli­mina, antes põe a nu, a es­sência das re­pú­blicas bur­guesas mais de­mo­crá­ticas como ór­gãos de opressão de classe», e «conduz à vi­o­lência de massas de forma ainda mais brutal que a an­te­rior», como fi­cara bem vi­sível em Paris em 1871 ou na Rússia no In­verno de 1905.

De­fine a con­cepção do par­tido de novo tipo, que se in­sere e uni­fica o mo­vi­mento do pro­le­ta­riado e o ori­enta no sen­tido da re­vo­lução.

De­fine a tác­tica do pro­le­ta­riado na re­vo­lução de­mo­crá­tica: no re­gime eco­nó­mico-so­cial exis­tente, ou seja, no ca­pi­ta­lismo, a re­vo­lução de­mo­crá­tica for­ta­le­cerá a do­mi­nação bur­guesa, mas «lim­pará o ter­reno para uma nova luta de classes».

Essa nova luta de classes aponta à re­vo­lução pro­le­tária, cujo ob­jec­tivo é o so­ci­a­lismo. E é na con­cepção do papel do povo na pas­sagem ao so­ci­a­lismo que re­side um dos mais po­de­rosos con­tri­butos de Lé­nine para o de­sen­vol­vi­mento do pen­sa­mento de Marx e En­gels.

Quando re­lemos Marx, En­gels ou Lé­nine, im­pres­siona a im­por­tância cen­tral que atri­buem à Co­muna de Paris, os en­si­na­mentos que ex­traem dos curtos 72 dias que essa he­róica ex­pe­ri­ência durou. Mas também im­pres­siona como, vinte anos antes desse es­pan­toso as­salto aos céus, Marx an­te­cipa al­gumas das suas formas: «em vez de de­cidir uma vez de cada três ou seis anos que membro da classe go­ver­nante havia de re­pre­sentar mal o povo no Par­la­mento, o su­frágio uni­versal havia de servir o povo, cons­ti­tuído em co­munas […]», co­munas que ele­ge­riam de­le­gados, re­vo­gá­veis a qual­quer mo­mento, que os re­pre­sen­ta­riam me­di­ante ins­tru­ções for­mais.

É esta linha que Lé­nine de­sen­volve com o maior vigor: «o Es­tado é ne­ces­sário para a pas­sagem ao so­ci­a­lismo. Não um Es­tado como re­pú­blica de­mo­crá­tica bur­guesa cor­rente, mas como a Co­muna de Paris de 1871, e como os so­vi­etes de de­pu­tados ope­rá­rios de 1905 e 1917». O que é novo a cons­truir são «[…] os so­vi­etes de de­pu­tados ope­rá­rios, cam­po­neses e ou­tros como único poder dentro do Es­tado, como pre­cursor da ex­tinção de qual­quer Es­tado».

Tanto no pe­ríodo entre 1905 e 1917, entre Fe­ve­reiro e Ou­tubro de 1917 e, de­pois da Re­vo­lução de Ou­tubro, nos du­rís­simos anos de de­fesa e con­so­li­dação do Es­tado so­vié­tico que se se­guiram, Lé­nine pros­segue o apro­fun­da­mento de uma con­cepção efec­ti­va­mente pro­le­tária da de­mo­cracia, em todos os as­pectos do exer­cício do poder, e face às múl­ti­plas re­sis­tên­cias com que o pro­cesso de cons­trução de uma so­ci­e­dade nova se vai de­fron­tando.

No «Es­tado e a Re­vo­lução», de­sen­vol­vendo a crí­tica de Marx e En­gels ao par­la­men­ta­rismo, Lé­nine afirma, to­davia: «o meio para sair do par­la­men­ta­rismo não con­siste na su­pressão das ins­ti­tui­ções re­pre­sen­ta­tivas e da ele­gi­bi­li­dade, mas na trans­for­mação das ins­ti­tui­ções re­pre­sen­ta­tivas de lu­gares de char­la­ta­nice em ins­ti­tui­ções de tra­balho. Não po­demos con­ceber uma de­mo­cracia, mesmo uma de­mo­cracia pro­le­tária, sem ins­ti­tui­ções re­pre­sen­ta­tivas, mas po­demos e de­vemos con­cebê-la sem par­la­men­ta­rismo».

Entre as ta­refas que aponta como pri­o­ri­tá­rias e ime­di­atas para o poder so­vié­tico co­loca a de «des­pertar e er­guer pre­ci­sa­mente aquelas ca­madas in­fe­ri­ores que os ex­plo­ra­dores es­pe­zi­nhavam», e levá-los a as­sumir todos os ní­veis de di­recção e res­pon­sa­bi­li­dade.

E em todas as ta­refas que se co­locam ao novo poder Lé­nine iden­ti­fica pers­pec­tivas de­mo­crá­ticas e de classe em con­fronto. Ca­rac­te­riza como o con­fronto entre a via de­mo­crá­tica/​re­vo­lu­ci­o­nária e a via bu­ro­crá­tico/​re­ac­ci­o­nária a con­tro­vérsia em torno da na­ci­o­na­li­zação da banca e dos con­sór­cios (pe­tróleo, carvão) e da re­gu­lação do con­sumo e o ra­ci­o­na­mento. In­siste, contra os de­mo­cra­tistas, que tratar como iguais os que são so­ci­al­mente di­fe­rentes seria pre­ci­sa­mente manter a forma como a so­ci­e­dade bur­guesa per­petua as de­si­gual­dades e as in­jus­tiças.

Con­trapõe a de­mo­cracia ao de­mo­cra­tismo, luta contra a con­versão dos mem­bros dos so­vi­etes em «par­la­men­tares» e bu­ro­cratas, luta contra a de­tur­pação bu­ro­crá­tica da or­ga­ni­zação so­vié­tica, pelo re­forço da so­lidez dos laços entre o povo e os so­vi­etes. O povo, que via no par­la­mento uma en­ti­dade alheia, vê os so­vi­etes como seus. Mas é ne­ces­sário re­forçar «formas es­pe­ciais de re­vo­gação e con­trolo», de um outro «con­trolo a partir de baixo», ex­pres­sões em que sen­timos ainda o eco he­róico e o es­pí­rito pro­fun­da­mente pro­le­tário da Co­muna de Paris.

 

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Num quadro em que a re­acção in­ter­na­ci­onal de­sen­volve uma ofen­siva em todas as frentes (mi­litar, di­plo­má­tica, eco­nó­mica, ide­o­ló­gica) contra o re­gime so­vié­tico, Lé­nine con­trapõe uma vi­go­rosa de­núncia, e afirma a de­mo­cracia so­vié­tica como in­com­pa­ra­vel­mente su­pe­rior à de­mo­cracia bur­guesa. Aqueles mesmos que acusam os bol­che­vi­ques de todos os crimes e o re­gime so­vié­tico como uma feroz di­ta­dura, fazem por ig­norar o que se passa nos seus pró­prios países. Na Ale­manha, com uma le­ga­li­dade cons­ti­tu­ci­onal que vai de 1871 a 1914, as res­tri­ções ao de­mo­cra­tismo tra­duzem-se no censo de re­si­dência, na ex­clusão das mu­lheres, na re­cusa de ce­dência de edi­fí­cios pú­blicos para reu­niões po­pu­lares e de ope­rá­rios, na or­ga­ni­zação ca­pi­ta­lista da im­prensa diária. São os as­sas­sí­nios de Karl Li­ebk­necht e Rosa Lu­xem­burg e, nou­tros países o caso Dreyfus, os mas­sa­cres de ope­rá­rios nos EUA, a guerra im­pe­ri­a­lista de 1914-18, um rol in­fin­dável de vi­o­lên­cias e crimes. A II In­ter­na­ci­onal, de­pois de trair o in­ter­na­ci­o­na­lismo, con­dena o bol­che­vismo. E a po­lí­tica de co­la­bo­ração de classe e o an­ti­co­mu­nismo dos seus di­ri­gentes na Ale­manha e nou­tros países não só de­sarma parte do mo­vi­mento ope­rário como co­meça a abrir ca­minho para o avanço do fas­cismo.

Lé­nine afirma a de­mo­cracia pro­le­tária como mil vezes su­pe­rior. Ela é, pela pri­meira vez na his­tória, a de­mo­cracia para a imensa mai­oria.

 

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Quando re­lemos os clás­sicos do mar­xismo, um dos as­pectos que nunca deixa de sur­pre­ender é por vezes en­con­trarmos afir­ma­ções que pa­recem ter sido es­critas pe­rante si­tu­a­ções dos dias de hoje. Veja-se esta afir­mação de En­gels: «os nomes dos par­tidos po­lí­ticos reais […] nunca estão com­ple­ta­mente certos; o par­tido de­sen­volve-se, o nome per­ma­nece». Não as­senta esta frase como uma luva aos par­tidos que há mais de 35 anos gerem a po­lí­tica de di­reita no nosso País? E quando re­flec­timos acerca das li­mi­ta­ções de­mo­crá­ticas da de­mo­cracia bur­guesa, como não lem­brar o gros­seiro des­prezo pela so­be­rania po­pular que ca­rac­te­riza a si­tu­ação ac­tual no nosso País, tra­du­zido cho­can­te­mente em dois factos:

- pri­meiro, temos aí o FMI a impor o seu plano de aus­te­ri­dade a mata-ca­valos, de modo a estar con­su­mado antes das elei­ções de 5 de Junho e não poder ser de­sau­to­ri­zado pelo voto po­pular;

- se­gundo, está em marcha a ma­nobra de cons­ti­tuição de uma co­li­gação pós elei­toral, sob o nome de «go­verno de sal­vação» ou outra de­sig­nação se­me­lhante, de modo a ga­rantir que, seja qual for o voto nas di­fe­rentes forças po­lí­ticas, es­teja de an­temão as­se­gu­rada uma mai­oria de di­reita.

É pe­rante estas som­brias re­a­li­dades, mesmo no plano de­mo­crá­tico, que o le­gado de Marx, En­gels e Lé­nine ganha re­do­brada ac­tu­a­li­dade. Eles mos­tram-nos porque é que as coisas se passam assim. Mas mos­tram-nos também que não só as coisas não têm de con­ti­nuar como estão, como a luta dos povos, tarde ou cedo, rom­perá estas amarras e abrirá ca­minho a uma outra so­ci­e­dade, fi­nal­mente livre da ex­plo­ração e da opressão, tão livre e de­mo­crá­tica que pres­cin­dirá até da pró­pria de­mo­cracia.

 

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* Comu­ni­cação apre­sen­tada na con­fe­rência «A De­mo­cracia Li­berta-se», que teve lugar em Lisboa, no dia 13 de Abril, in­te­grada no ciclo «Lé­nine e a De­mo­cracia», or­ga­ni­zado pela As­so­ci­ação Iúri Ga­gárin e a Bi­bli­o­teca-Museu Re­pú­blica e Re­sis­tência