Joaquim Lagoeiro – o contador de estórias; um exigente transfigurador da palavra

Domingos Lobo

Agora que o autor deixou o nosso con­vívio, aos 92 anos de uma vida pre­en­chida por so­nhos, so­li­da­ri­e­dade, afectos, tra­ba­lhos e lutas; per­pas­sada pelas má­goas que a lon­ge­vi­dade ine­vi­ta­vel­mente ar­rasta; vi­vendo num país que quase lhe ig­norou, por atá­vica so­bran­ceria, a obra; alhe­a­mento que o levou a romper com o cir­cuito co­mer­cial e a auto-pu­blicar-se, em pro­fícuo e co­ra­joso labor edi­to­rial. Re­lem­bremos, por­tanto, nas pá­ginas do Avante!, que foi também o seu jornal, al­guns dos textos de um vasto es­pólio dis­perso pelo ro­mance (15 tí­tulos); pelo conto (5 tí­tulos); pelas cró­nicas lin­guís­ticas, pelas es­tó­rias in­fantis, pela po­esia e pela abor­dagem crí­tica: he­rança pe­rene desse que foi, até ao fim, um pro­sador atento ao real e es­for­çado ar­tesão de pa­la­vras.

Image 7832

Fa­lemos, com bre­vi­dade pos­sível, da obra do autor de Mi­lagre em S. Bar­to­lomeu, úl­timo tí­tulo de um tríp­tico que in­clui Madre An­tiga e se inicia com esse texto ca­nó­nico que é Viúvas de Vivos, tí­tulo a jus­ti­ficar re­e­dição ur­gente e cri­tica. Com esta aná­lise breve, se pre­tende con­tri­buir para des­pertar, nos mais de­sa­tentos, a lei­tura que obras como Madre An­tiga, O Poço, Ca­far­naum, Mar Vivo, Caiu Um Santo do Altar, e o úl­timo que pu­blicou em vida, O Baile, ple­na­mente jus­ti­ficam.

Jo­a­quim La­go­eiro foi, so­bre­tudo, um exímio con­tador de es­tó­rias. Coisas cer­zidas com vagar de ar­tesão lú­cido e tenaz. Es­tó­rias curtas quase sempre, com tempos e res­pi­ra­ções cer­teiros, man­tendo a chama, a atenção viva do leitor, re­ma­tada téc­nica. Contos e no­velas mol­dados com rigor (os ca­pí­tulos de Viúvas quase que so­bre­vivem in­de­pen­dentes do corpus cen­tral do ro­mance), um es­ti­laço apu­rado, como diria o Mário de Car­valho, bu­ri­lado e destro, ágil nas re­ver­be­ra­ções da língua, mesmo quando finta os verbos e se ex­cede em la­ti­nó­rios co­lhidos na cepa, exe­gese rara. Um es­teta da ora­li­dade, das falas de an­tanho, ru­dezas avo­engas ele­men­tares, ver­ná­culo agreste, vivo, cur­tido – fa­lajar pró­prio das terras de par­tida e ar­ri­bação: diás­pora nossa, des­tino in­ter­mi­nável, fado será – os deuses que se ama­nhem nesses me­an­dros de alma.

Os diá­logos das co­ma­dres, em Viúvas de Vivos, são do me­lhor que a li­te­ra­tura por­tu­guesa pro­duziu desde Ca­milo. Pena que o te­atro o não tenha se­du­zido e nessa la­men­tação faço coro com Mário Sa­cra­mento, que nos diá­logos, por onde a arte do es­criba mais se ex­pande, foi La­go­eiro mo­delar. A mes­tria com que esta fala rompe os so­bejos do ro­man­tismo e im­pregna a prosa de um ero­tismo des­com­ple­xado, ex­pur­gado da ganga hi­pó­crita de sa­cristia sa­la­za­renta, ul­tra­pas­sando os di­tames do tempo e a vi­gília cen­sória, é de mestre. Em­bora o Ca­milo das no­velas nos surja amiúde à es­quina da nar­ra­tiva, nas at­mos­feras, no fa­lajar das gentes, La­go­eiro impõe ao texto a mo­der­ni­dade, a elipse, o corte abrupto e eficaz, anu­lando, com sa­geza, o trá­gico re­dutor.

O es­critor re­side no es­tilo, es­creveu Her­berto Helder. A es­crita de Jo­a­quim La­go­eiro afirma ple­na­mente essa con­signa, desde Viúvas de Vivos até ao re­cente O Baile. Há nos seus pro­cessos ofi­ci­nais, desde os pri­mór­dios (não es­quecer que se es­treou nas le­tras com co­mo­vente e cru ro­mance, como es­creveu Ur­bano Ta­vares Ro­dri­gues, re­fe­rindo-se a Viúvas de Vivos) uma es­crita que ba­lança entre os di­tames da axi­o­logia es­té­tica e os da axi­o­logia es­té­tico-ide­o­ló­gica.11

Po­de­riam as es­tó­rias cru­zadas de Viúvas de Vivos serem-nos con­tadas sem esse pro­dígio que a lin­guagem nelas opera, ou sem a ba­gagem ide­o­ló­gica que o im­pregna? As dores e os re­morsos, os de­sejos de Vi­vência, as mu­lheres que no la­va­douro se in­sultam e de­ses­peram até à vi­o­lência, per­didas nos la­bi­rintos cruéis de uma vida, des­tino será, que não co­mandam, so­frendo agruras das quais nem se­quer sus­peitam as ori­gens; fado que assim as priva de homem e de am­paro, de com­pa­nhia para as longas e so­fridas tra­ves­sias do In­verno e das fomes; e a se­cura de Amélia, o de­sa­pego pela filha de um de­sejo fugaz mas in­te­res­seiro, ca­pricho de me­nina tonta à Ma­nuel da Fon­seca, mas cal­deado com o prag­ma­tismo das gentes dos li­to­rais bei­rões. Estas mu­lheres, de ho­mens au­sentes, se nos se­duzem ou ma­goam, se com elas nos ir­ma­namos nas dores e nas lá­grimas, se com elas sor­rimos ou nos api­e­damos é por mor dessa fala cáus­tica e mordaz, com raízes fundas na in­ter­tex­tu­a­li­dade de que ir­mana; vem-nos de Aquilo Ri­beiro, das falas da gente das altas beiras, do Ma­lha­di­nhas, de Quando os Lobos Uivam, Terras do Demo; à mis­tura com a se­re­ni­dade lí­rica e trá­gica de um Leão Pe­nedo – par­ceiros do autor no des­bravar da língua, na des­co­berta e re­ve­lação das nossas mais fundas idi­os­sin­cra­sias, sem es­quecer os pri­mór­dios da língua agreste e des­tem­pe­rada de Gil Vi­cente, que estas praias des­bravou no seu Auto da Índia. Si­nais, la­nhos nossos, ca­mi­nhar pelo mundo com agravos de fome e de ver­tigem.

Essas mu­lheres que de­fi­nham em pai­sagem de­serta de macho, que exas­peram de so­lidão e as ou­tras que cons­tróem sub-rep­tí­cias teias do de­sejo para so­bre­vi­verem à lou­cura, ao de­ses­pero dos dias; as es­tóicas que su­portam, pelos fa­vores da for­tuna, as longas noites de es­pera em ca­tres de­sertos, a per­derem viço e a ga­nharem rugas e ce­lu­lite; car­co­midas traves que sustêm o de­sejo, o me­lhor da vida. Estas Pé­ne­lopes da beira Ria, te­cendo, entre sar­gaço e linho, os es­parsos fios da es­pera, porque é ne­ces­sário cons­truir um si­mu­lacro de vida, fa­bular o de­ses­pero. Es­teios de muitas de­rivas, de tantos en­con­trões, tantos anos de vida à bo­lina – nesta es­crita também por lá an­damos aos bal­dões.

Viúvas de Vivos é uma es­pécie de Auto da Índia ac­tu­a­li­zado, sem as naus de aportar à Ri­beira, mas com a Ria a subir com sal e lá­grimas pelas terras aban­do­nadas, com as dunas que tapam ho­ri­zontes de onde parte a frágil bar­caça do João Frade em busca de uma Amé­rica mí­tica e da for­tuna da­queles que a en­con­tram. Índia sem Preste João, sem he­róis nem glória. A re­a­li­dade a preto e branco e fu­ligem. Penas nossas, es­parsas no vento.

 

Des­cons­trução, o outro lado de Viúvas de Vivos

 

Nestas terras de­sertas de ho­mens, como a Ga­liza de Ro­salia de Castro, co­meçam a surgir si­nais de mu­dança, trans­for­ma­ções ex­te­ri­ores que o di­nheiro que vem do outro lado do mar, per­mite. Que nem sempre a des­ven­tura ronda estas praias. Os­ten­tação que trans­forma a rural pai­sagem, mai­sons que ma­goam o olhar nos­tál­gico; os ape­tre­chos do­més­ticos, o fri­go­rí­fico, a te­le­visão, o au­to­móvel, o trajar, as poses do re­me­deio eco­nó­mico. Os des­va­lidos da sorte re­gressam e vingam-se des­vir­tu­ando a pai­sagem que só lhes deu fome e can­seiras, terra que não che­gava para todos e da qual os braços fu­giram dei­xando-a aban­do­nada aos cardos, às silvas e aos par­dais.

A emi­gração foi (é) uma fuga ao real, uma in­ca­pa­ci­dade dos opri­midos en­ten­derem os me­ca­nismos das opres­sões que os sub­metem ao ata­vismo da mi­séria e da ig­no­rância. A emi­gração era (é) forma úl­tima de dar lugar ao sonho e à es­pe­rança, de ar­ranjar li­ni­mentos para a vida. O mundo não podia ser apenas esse chão min­guado, a broa curta, a sar­dinha di­vi­dida por três. Ou­tros mundos exis­tiam para além da Ria e do Mar mesmo que pro­curá-los obri­gasse a de­cepar raízes; partir à aven­tura em barcos que che­gavam ou não ao porto por achar, dei­xando em terra mu­lheres secas com o co­ração cheio mais de am­bição que de amor. O amor é um luxo que as ur­gên­cias da fome su­bal­ter­niza.

Mas não foi apenas a pai­sagem que mudou com a emi­gração, mu­daram igual­mente os há­bitos, os cos­tumes, o lin­guajar. O pa­ra­digma dessa mu­dança e do drama que lhe está as­so­ciado, o qual ainda hoje, de forma mais ate­nuada, pros­segue, vem ins­crito na no­vela Des­cons­trução. Cin­quenta e sete anos se­param Viúvas de Vivos de Des­cons­trução e, no en­tanto, há nesta no­vela pí­cara e a roçar o fan­tás­tico a mesma exu­be­rância no uso da língua, a mesma ca­pa­ci­dade in­ven­tiva, o mesmo es­ti­laço já de­tec­tado em Viúvas, em­bora um tudo nada mais solto e de­pu­rado.

Des­cons­trução fala-nos não já da par­tida mas do re­gresso de um ame­ri­cano. O Xico ra­nhoso que foi para a Amé­rica e re­gressou com al­guns pa­tacos no bolso do co­lete. Cons­truiu maison de ad­mi­ração, vá­rios an­dares, com mi­rantes e ou­tros luxos alheios à ar­qui­tec­tura in­dí­gena, mor­do­mias de es­tran­gei­rado. Con­quista a Mi­que­lina, es­pécie de Anjo Azul das sa­linas, ru­deza ele­mentar nas artes de se­dução; compra tí­tulo de Barão para exibir com a far­pela nova, pa­tro­cina obras de ca­ri­dade para pa­dro­nizar es­ta­tuto. O Xico da cons­trução me­ga­ló­mana, da maison para as­sombro bas­baque, vi­vendo a sua fugaz pas­sagem pelas gran­dezas do mundo, mas igual­mente o Xico ra­nhoso da Des­cons­trução, da casa ven­dida ti­jolo a ti­jolo: país da gran­deza de­ca­dente de D.João V às mi­sé­rias da tanga ac­tual, me­tá­fora nossa, min­guada e vil tris­teza de pá­tria acé­fala. A arte de con­tador exímio de Jo­a­quim La­go­eiro, a meter na no­vela, à so­capa, (rabo es­con­dido com o gato de fora) pe­cados nossos, de sempre: a moral to­lhe­dora, ainda a cheirar ao unto me­dievo; a vã co­biça, a raiva, o ciúme, o fado, con­tudo o humor ra­re­feito e sorna (aquela do crime é hi­la­ri­ante), ca­di­nhos de fan­tás­tico, a alma des­bra­gada, o acinte à Eça; Xico-Barão a ir-se de brios, ao ta­pete, a aman­cebar-se com a Rosa criada (ao que um Barão, de fi­gu­rino rua dos Fan­queiros, chega), ambos ca­rentes de afectos no de­sam­paro dos dias sob telha vã, com bá­coros e ca­bras à com­pita. Um gozo na sin­taxe, de­leite para os sen­tidos esta es­crita. Sobe a adre­na­lina com os frios, ventos de leste, pres­sá­gios de mau agoiro, e os amantes re­sistem às in­tem­pé­ries e ao fa­la­tório das gentes. O Xico a re­gressar à sua con­dição ori­ginal sem ade­manes de ba­ro­nato, raso como a casa, a acon­chegar-se à ver­dade, ali­viado do peso de si mesmo .

A es­tória de Des­cons­trução não está ali­cer­çada na de­sa­gre­gação de um ca­rácter (H. L. Menken), mas é pro­duto do tran­si­tório fas­cínio do Xico pelos bri­lhos do mundo, em­pur­rado pela sa­cri­panta de sua Mi­que­lina, mu­lherio com o Demo no corpo: ten­ta­ções bí­blicas; fra­quezas do corpo, que um homem não é de pau. Xico não é um ob­ce­cado de­pres­sivo como o des­gra­çado pro­fessor de Anjo Azul. É lú­cido e aguenta as es­to­cadas da sorte, em­bora por vezes a tampa se lhe solte e res­vale para a as­neira – nada de ir­re­me­diável, con­tudo. Xico é um re­sis­tente, um lu­tador que Jo­a­quim La­go­eiro cons­trói com de­tec­tável ter­nura, que hu­ma­niza até à su­bli­mação, em to­cante pro­cesso di­e­gé­tico. Mesmo quando a prosa pa­rece ten­tada pelo faca e al­guidar de cor­dame, La­go­eiro, pres­ti­di­gi­tador atento, dá a volta ao texto, re­fresca a nar­ra­tiva com pi­tadas de humor sadio, pin­ce­ladas leves de um fan­tás­tico sem trevas e vol­tamos a render-nos a essa es­crita de sal e água, a essa pu­reza es­sen­cial da fala, a essa téc­nica de saltar o abismo que só um grande es­critor con­segue en­cenar.

Xico é o re­gres­sado do sonho ame­ri­cano, um dos que partiu de noite no frágil barco do João Frade, voltou rico para perder-se/​en­con­trar-se na leira ma­drasta. A no­vela Des­cons­trução po­deria ser o úl­timo ca­pí­tulo de Viúvas de Vivos: o seu final pí­caro e feliz.

Ape­tecia-me ainda falar de al­gumas mu­lheres que po­voam as pá­ginas, be­lís­simas, de O Baile: D. En­grácia, a arder de de­sejos; a pú­dica Glo­rinha; a trá­gica Ben­ze­deira do Mar; das me­geras, das cal­cu­listas, das ar­dentes, das con­for­madas, das le­vi­anas; uma ga­leria de re­tratos no fe­mi­nino, que nesse par­ti­cular era o verbo, o olhar e a ima­gi­nação de Jo­a­quim La­go­eiro exí­mios pers­cru­ta­dores. Mas, igual­mente, Vi­cência, Céu, Rosa, Amélia, de Viúvas, mu­lheres de ho­mens que hão-de emi­grar sempre, en­quanto não houver tra­balho para todos, ou en­quanto não con­se­guirmos que esta terra, aonde an­damos de­ri­vando alheios de iden­ti­dade e de me­mória, na qual nem se­quer a Jan­gada de Pedra, de José Sa­ra­mago, nos con­forta de epo­peia, re­al­mente nos per­tença e nós nela pos­samos ser, fi­nal­mente, con­du­tores do nosso pró­prio des­tino.

Um dia.

11 Ur­bano Ta­vares Ro­dri­gues, sobre Viúvas de Vivos



Mais artigos de: Temas

Programa da <i>troika</i> ataca Estado Social em várias frentes

Um dos ata­ques mais graves ao «Es­tado so­cial» é a re­cusa de um di­reito fun­da­mental a cen­tenas de mi­lhares de por­tu­gueses, que é o di­reito ao tra­balho e a um em­prego digno con­sa­grado na pró­pria Cons­ti­tuição da Re­pú­blica.

A miséria do pensamento pós-moderno

Fre­dric Ja­meson com uma ex­tensa obra sobre o pós-mo­der­nismo, es­cal­pe­liza as ín­tima re­la­ções entre o pós-mo­der­nismo e as ge­ne­ra­li­za­ções so­ci­o­ló­gicas que anun­ciam um novo tipo de so­ci­e­dade que al­cu­nham de so­ci­e­dade pós-in­dus­trial. Ar­gu­menta que «qual­quer que seja o ân­gulo de aná­lise sobre o pós-mo­der­nismo na cul­tura e nas hu­ma­ni­dades tem ne­ces­sa­ri­a­mente uma po­sição po­lí­tica, im­plí­cita e ex­plí­cita, com res­peito à na­tu­reza do ca­pi­ta­lismo mul­ti­na­ci­onal dos nossos dias (…) à ló­gica desse ca­pi­ta­lismo tardio».

Reforma fiscal ao serviço de mais justiça social

Num ano com 365 dias de ca­len­dário des­con­temos os sá­bados, os do­mingos, os fe­ri­ados e o pe­ríodo normal de fé­rias. Mul­ti­pli­quemos o re­sul­tado por oito horas diá­rias de tra­balho. En­con­trado esse valor di­vi­dimo-lo pelo sa­lário ganho pelo se­nhor Zeinal Bava, pre­si­dente exe­cu­tivo da Por­tugal Te­lecom.