As outras vozes

Correia da Fonseca

Ao longo de vá­rios dias, não apenas no pas­sado do­mingo, 11 de Se­tembro mas também nos dias que ime­di­a­ta­mente o an­te­ce­deram e até nos que se lhe se­guiram, o grande tema da área dita in­for­ma­tiva da te­le­visão por­tu­guesa foi a tra­gédia das twin towers, há dez anos, em Nova Iorque. Não es­panta que tenha sido assim: o bi­nómio Nova Iorque-Washington é como que a ca­pital do Oci­dente Eu­ro­a­tlân­tico, um pouco como Roma é a ca­pital es­pi­ri­tual dos ca­tó­licos e talvez Meca o seja para os mu­çul­manos. Terá sido por isso, aliás, que José Ro­dri­gues dos Santos foi fazer o Te­le­jornal do dia 11 no agora cha­mado «ground zero»: para muitos por­tu­gueses, ir a Nova Iorque será um pouco o que para um mu­çul­mano é ir a Meca e Ro­dri­gues dos Santos terá apro­vei­tado a opor­tu­ni­dade para mais uma pe­re­gri­nação. Lá o vimos a dar-nos no­tí­cias de um prédio de Lisboa em risco de ruir e do Con­gresso do PS em Braga, isto é, a dizer-nos coisas que bem podia dizer-nos a partir de um es­túdio em Lisboa com pro­vável eco­nomia de custos mas sem acres­centar ao seu cur­rí­culo pro­fis­si­onal mais uma des­lo­cação «his­tó­rica». E lá o vimos e ou­vimos a cor­ro­borar ex­plí­cita ou im­pli­ci­ta­mente a ex­pli­cação ofi­cial para o aten­tado: foi gente má e louca, li­gada à Al Qaeda e co­man­dada por Bin Laden, que exe­cutou o crime he­di­ondo que em poucos mi­nutos quase matou tanta gente quanto o golpe de Pi­no­chet ma­tara no Chile, vinte e oito anos antes, em poucos meses. De facto, em ma­téria de car­ni­fi­cina o aten­tado de Nova Iorque me­receu ins­crição na pá­gina si­nistra onde já cons­tavam os mas­sa­cres de Hi­roshima, Na­ga­saki e Dresden, ha­vidos em 1945, por sinal de re­co­nhe­cida au­toria norte-ame­ri­cana e bri­tâ­nica.

 

Como era pre­ciso

 

Temos, pois, que para o go­verno dos Es­tados Unidos nunca houve dú­vidas: Bin Laden e a Al Qaeda foram os man­dantes dos as­sas­sinos, os res­pon­sá­veis pelo crime. E é claro que o que não tem dú­vidas para o go­verno dos Es­tados Unidos não ofe­rece a menor dú­vida para os grandes meios de in­for­mação oci­den­tais em geral e de­sig­na­da­mente para a te­le­visão por­tu­guesa. En­tre­tanto, os Es­tados Unidos não se fi­caram, como se diria em lin­guagem po­pular, e pouco tempo de­pois do 11 de Se­tembro de 2001 já o Afe­ga­nistão es­tava a ser ata­cado pelo Oci­dente de­mo­crá­tico e livre, já um pouco mais tarde o Iraque era in­va­dido por forças dos Es­tados Unidos e anexos. Convém não es­quecer que, por de­cisão do go­verno, o nosso País es­teve desde o início in­cluído nesses «anexos» em­bora com par­ti­ci­pação fraca e, se­gundo muitos, fa­zendo uma fraca fi­gura. De qual­quer modo, é claro que para a te­le­visão por­tu­guesa (três ope­ra­doras dis­tintas mas uma só ex­pli­cação ver­da­deira nesta ma­téria como aliás nou­tras) o que Washington apu­rara com ful­mi­nante ra­pidez quanto à au­toria do aten­tado cons­ti­tuía sem dú­vida a ver­dade in­dis­cu­tível. Era o que fal­tava, que os grandes meios de co­mu­ni­cação oci­den­tais, entre os quais a TV lusa ob­vi­a­mente se en­contra, co­me­çassem a du­vidar da in­for­mação made in USA! E assim se pas­saram os anos, na caça a Bin Laden que cul­minou no seu abate, na «guerra ao ter­ro­rismo», nos mi­lhares de mortos ha­vidos no Iraque e no Afe­ga­nistão, entre os quais muitos mais norte-ame­ri­canos que os mortos no ter­rível 11 de Se­tembro. Porém, eis que en­tre­tanto, nas duas mar­gens do Atlân­tico, muitos ho­mens se pu­seram a re­flectir, a in­ves­tigar, a co­ligir do­cu­mentos, a com­parar; e não eram uns quais­quer, eram jor­na­listas e ci­en­tistas com per­cursos e cur­rí­culos res­pei­tados. Che­garam eles à con­clusão de que as coisas não po­diam ter-se pas­sado na­quela manhã si­nistra tal como o go­verno dos Es­tados Unidos dis­sera, e que tudo apon­tava para uma acção ver­da­dei­ra­mente mons­truosa de gente afecta à ad­mi­nis­tração Bush. Assim sur­giram um pouco por todo o lado vozes que com im­pres­si­o­nantes ar­gu­mentos con­tavam o 11 de Se­tembro de ma­neira bem di­fe­rente da ofi­cial, vozes que con­tudo a tríade que con­subs­tancia a TV por­tu­guesa pa­recia nunca ter ou­vido. Até ao pas­sado do­mingo. Porque na tarde deste do­mingo úl­timo a TVI24 (canal pago e por isso de acesso li­mi­tado, é certo) aplicou-se du­rante cerca de duas horas a dar-nos a co­nhecer o que essas ou­tras vozes têm vindo a re­petir. Foi um com­por­ta­mento que serviu o plu­ra­lismo in­for­ma­tivo, o es­pí­rito da de­mo­cracia, o prin­cípio da con­tra­dição, e por isso foi sur­pre­en­dente no con­texto que bem co­nhe­cemos. Foi um canal por­tu­guês a cum­prir o seu dever de in­formar. Como era pre­ciso.



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